O número de professores e outros funcionários temporários nas escolas estaduais do Paraná triplicou ao longo de 2019, sob a gestão do secretário Renato Feder, agora indicado a ministro da Educação do país. E mais de 10 mil deles estão irregularmente há mais de seis anos neste tipo de contrato – a legislação diz que o período máximo é de dois anos, segundo aponta um relatório do Tribunal de Contas do Estado do Paraná (TCE-PR) a que a CNN teve acesso, e que revela irregularidades cometidas pela pasta naquele ano. Para o órgão, o problema revela “manifesta falta de planejamento” da Secretaria de Estado da Educação e do Esporte (Seed).
Segundo o documento, de 133 páginas, a quantidade de funcionários temporários foi de 12.272 em janeiro para 34.404 em dezembro. O custo saltou de R$ 17,1 milhões para R$ 90 milhões. Isto pode ocorrer, segundo o órgão, por causa de aposentadorias e demais afastamentos legais dos servidores efetivos.
O TCE apontou a existência de 15,2 mil contratos que extrapolaram o prazo máximo de dois anos. Para a corte, a realização de contratações deste tipo não observa o caráter transitório e excepcional previsto na legislação. Segundo o documento, ao menos 11 mil deles estavam há 6 anos ou mais em funções temporárias. A corte avalia que “fica evidente o uso indiscriminado das contratações temporárias no Estado do Paraná em burla ao princípio constitucional do concurso público.”
Para o TCE, houve “falta de planejamento adequado para o suprimento da demanda de profissionais da educação, admitidos por concurso público, para atuarem nas escolas, de forma a evitar as excessivas contratações temporárias em contrariedade à legislação vigente.”
Não se trata de mero problema administrativo, segundo o órgão, mas de um problema crônico que pode levar a prejuízos na formação dos estudantes. O TCE apontou que o quadro de professores da pasta não é suficiente para atender a demanda dos últimos anos, com tendência de aumento da carência de profissionais da educação em razão da não realização de concurso público.
“Há carência de profissionais para atender a Base Nacional comum, tanto do ensino médio como do ensino fundamental”, diz o documento.
A situação, inclusive, pode levar a prejuízo financeiro por causa de processos – há 27.04 ações judiciais requerendo a nulidade desses contratos temporários, sendo a maioria (2,1 mil) de professores. “Há um potencial dano ao erário estimado, mensalmente, em 8% sobre o valor dos vencimentos básicos dos 15,2 mil servidores contratados em regime especial cujos prazos de vigência extrapolam os 2 anos previstos na legislação, afora os honorários advocatícios.”
Uma das justificativas da pasta para o uso de temporários é que alguns professores efetivos ocupam cargos administrativos e precisam ser substituídos nas escolas. A pasta também criou uma comissão para dimensionar a demanda para eventual realização de concurso público mas, segundo o TCE, o grupo se reuniu apenas três vezes e que a não se identificou “o início dos trabalhos de mapeamento da demanda de rede estadual.”
Para o TCE, ainda que fosse o primeiro ano da gestão de Feder, “cabe ao gestor a adoção de todas as providências a seu alcance para solucionar o problema ou, ao menos, mitigar os danos que decorrem da utilização dos professores temporários em detrimento ao provimento de cargos por concurso público.”
Empresa de limpeza
O relatório do TCE aponta ainda outras irregularidades, como a contratação de uma empresa de limpeza que registrou 397 faltas de funcionários, mas sem descontos nos pagamentos. O TCE apontou ainda cartões de ponto apresentados em duplicidade para comprovar a execução do serviço e outros problemas no contrato. O governo afirmou ao órgão que detectou as irregularidades em março e determinou a implementação de um livro de registro de ocorrências desde então. A secretaria esclareceu que os valores foram devolvidos e não houve prejuízo.
Documentos obtidos pela CNN mostram que Renato Feder, cotado para assumir o Ministério da Educação, atuou como conselheiro administrativo de uma de suas empresas enquanto exercia o cargo de secretário estadual de Educação no Paraná. Os documentos também mostram que, desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, a Multilaser fechou dois contratos com o governo federal — e ambos estão em vigor.
O primeiro, no valor de R$ 14,2 milhões, foi firmado em dezembro de 2019 e tinha como objetivo o fornecimento de mais de 28 mil tablets ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para a realização do Censo 2020, que foi adiado por conta da pandemia da Covid-19.
Contrato da Multilaser com o governo federal
Foto: Reprodução/Portal da Transparência
O último contrato da Multilaser com o governo federal, firmado com dispensa de licitação, foi assinado no dia 15 de maio deste ano e tinha como objetivo o fornecimento de mais de 100 mil máscaras cirúrgicas. O valor do contrato foi de R$ 313 mil e a pasta responsável pela compra foi o Ministério da Educação, a mesma que Renato Feder está cotado para comandar.
Contrato da Multilaser com o governo federal
Foto: Reprodução/Portal da Transparência
Feder é sócio da Multilaser Industrial S.A., que está no mercado há mais de 30 anos e se apresenta como um dos maiores players do segmento de eletrônicos e de suprimentos de informática nacional. A Multilaser tem feito negócios com a administração federal desde 2011, sempre através de uma de suas filiais, localizada em Extrema, no sul de Minas Gerais, próxima às cidades paulistas de Bragança Paulista e Atibaia.
Entre 2011 e 2018, a Multilaser fechou 28 contratos com órgãos ligados aos Ministérios da Previdência Social, Economia, Educação e Advocacia-Geral da União (AGU). Esses contratos, juntos, totalizaram mais de R$ 400 mil. O maior deles, fechado ainda durante a administração de Dilma Rousseff, foi firmado justamente com o Ministério da Educação, no valor de R$ 151 mil, e tinha como objetivo o fornecimento de 600 tablets para escolas da rede pública.
Conflito
Segundo Gustavo Justino de Oliveira, professor de Direito Administrativo da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), a lei sobre conflito de interesses começa a valer assim que a pessoa assume um cargo público.
“Novos contratos não podem ser firmados, obviamente, com o Governo Federal, em face da Lei de Conflitos de Interesses – lei federal 12.813/13 e do código de conduta da Alta Administração de 2000. Sobre contratos antigos, nenhum tipo de remuneração poderá ser recebido, obviamente, a partir da posse como ministro”, diz o professor.
Em novembro de 2018, Renato Feder deixou o cargo de presidente do Conselho de Administração da Multilaser. O documento que formalizou a saída desse cargo, apesar de assinado em 2018, só foi registrado na Junta Comercial do Estado de São Paulo seis meses depois, em maio de 2019.
Ata que registra saída de Renato Feder do cargo de presidente do Conselho de Adminstração da Multilaser
Foto: Reprodução/Jucesp
Em 2011, a Multilaser foi transformada de empresa Limitada (LTDA.) em Sociedade Anônima (S.A). de capital fechado, tendo como sócios Alexandre Ostrowiecki, Edward James Feder, Rafael Feder e Renato Feder. De acordo com o artigo 138 da Lei das Empresas de Sociedade por Ações (Lei 6404/76), o Conselho de Administração de uma empresa será responsável pela administração se o estatuto da organização assim determinar, o que é caso da Multilaser.
Trecho do estatuto da Multilaser
Foto: Reprodução
Já a Lei Federal 8112/90, que trata dos servidores públicos, estabelece que “servidor é a pessoa legalmente investida em cargo público” e que esse cargo pode ser ocupado por meio de nomeações, como é o caso dos ministros e secretários estaduais. No artigo 117 desta mesma lei, são detalhadas as proibições impostas aos servidores públicos, entre elas, a de “participar de gerência ou administração de sociedade privada”. Já a lei para os servidores paranaenses diz que eles não podem administrar empresas, caso estas forneçam produtos ou serviços para o Estado.
Conselheiro
Apesar do documento que atesta que Renato Feder deixou a presidência do Conselho, outros documentos, de abril e maio de 2019, demonstram que ele esteve presente em outras reuniões na condição de conselheiro administrativo.
Renato Feder participou de reunião em abril de 2019 como conselheiro da Multilaser
Foto: Reprodução/Jucesp
Renato Feder participou de reunião em maio de 2019 como conselheiro da Multilaser
Foto: Reprodução/Jucesp
Em agosto de 2019, outra reunião estabeleceu a extinção do Conselho de Administração e destituição dos membros, entre eles Renato Feder — o que demonstra que, pelo menos formalmente, Feder continuou ligado à administração da empresa nos primeiros oito meses em que atuou como secretário de Educação do Paraná.
Ata que registra extinção do Conselho de Administração da Multilaser
Foto: Reprodução/Jucesp
Para Justino, o registro da ata na Junta Comercial é um ato de fé pública, no sentido de que presumem-se verdadeiras as informações e o conteúdo do documento, incluindo a sua data.
“Aqui, se faz necessário analisar a legislação do Estado do Paraná. Geralmente, a legislação solicita que para a posse, ou entrada em exercício, o secretário de estado deve afastar-se de cargos de direção de empresas privadas, não podendo receber remuneração privada, salário, bônus, lucros de qualquer natureza, a partir do momento em que passar a exercer o cargo de secretário”, explica.
“Se ele se manteve no conselho de administração da empresa e praticou atos de administração, ele pode ter ofendido o estatuto dos servidores públicos. Mas tudo isso precisa ser apurado por órgãos de controle e conforme o caso, aplicar sanções”, explicou o advogado e professor de Direito Constitucional da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Alessandro Soares.
Procurada, a Multilaser informa que, “de fato, ele [Feder] não estava no conselho em 2019 e deixou de atuar na Multilaser em novembro de 2018”. Ainda segundo a empresa, no documento enviado pela CNN houve um erro de preenchimento, e esse documento é preenchido pela própria Jucesp (Junta Comercial do Estado de São Paulo) e não corresponde com as atas da companhia.
Atualmente, Feder continua sendo um dos sendo um dos sócios da empresa, além de ser parente de outros proprietários da companhia. Fora a Multilaser, ele ainda consta como sócio ou proprietário de outras 29 empresas na Receita Federal. No entanto, nenhuma dessas outras empresas possuem contratos com o governo federal.
Com informações CNN Brasil