Voltei do aeroporto e sentei-me no terraço de minha casa. Sentia falta apenas do ambiente bucólico dos nascentes de minha infância, com o riozinho tranquilo, que acordava sob o seu lençol de neblina à chegada das mulheres que iam buscar água em suas fontes. Já não podia ouvir o mugido das vacas no curral, senão mentalmente, e a algazarra das aves, as vozes antigas das pessoas de casa, o sino da igreja, que tinha um chamado mais cordial para a missa.
Numa gaiola do alpendre, o canto da patativa de meu filho era a única porta real de acesso àquele mundo de outrora, para que a memória passasse livre ao encontro de suas imagens, especialmente de um homem bom, amigo, que perdi para sempre e que nunca posso esquecer quando retorno a infância – meu Pai.
De repente tive pensamentos tristes, embora sentisse que era tão feliz, tão alegre. Pensei no drama dessa gente pobre que mora defronte de minha casa. No sofrimento da jovem enferma desenganada pelos médicos. Lembrei-me dos operários injustiçados, do desespero dos que recebem o dia muito cedo e nele não podem crer, porque nada tem para comer. Na desgraça dos que acordam distante e não podem comprar a passagem de volta, dos que estão chegando bêbados em casa. Como é triste o dia que entra pelos postigos das enfermarias insones e pelas grades dos cárceres. O dia nunca devia amanhecer para os que não tem fé em quem fez as suas belezas ou não possuem o dom de contemplá-las.
“O acordar de uma noite sem sonhos para um dia de muitos credores.” – Ah, Fernando Pessoa!… Hoje eu vi o dia nascer e estava de pé para recebê-lo, a cantar um hino de ação de graças pelos que alcançaram um lugar ao sol e convidando-os, fraternalmente, para irmos buscar outros.
Ouvimos primeiros apitos das fábricas, vi o padeiro que passava e lhe disse: bom dia; vi as empregadas sonolentas que se dirigiam aos mercados e desejo-lhes felicidades; acenei para os garis do caminhão de lixo e eles se foram limpando a cidade. Quando me espantei, estava fazendo uma coisa que, há dias não fazia; estava recitando: “Venha a nós o Vosso Reino…” – e o calor do dia esquentava-me o corpo e suas energias me animavam a alma.
Bernardo Coelho de Almeida. São Luís, 1953. “Galeria: crônicas”.
@comanbeckman