O golpe que Jair Bolsonaro vem armando é tão evidente que uma parte dos democratas brasileiros já começou a sentir inveja da normalidade alheia. No segundo fim de semana de junho, o sentimento ficou mais nítido para quem viu a foto dos líderes do G7, grupo das sete democracias mais ricas do mundo. Sob um céu plúmbeo, à beira do mar sereno de uma baía da Cornualha, os líderes se cumprimentaram com os cotovelos, subiram no estrado montado na areia da praia e posaram para fotógrafos. Depois, reuniram-se em torno de uma grande mesa redonda e discutiram os problemas do mundo – o aquecimento global, o coronavírus, a onda autoritária, a China.
Foi a primeira vez, desde o início da pandemia, que se sentaram frente a frente, enterrando a diplomacia via Zoom. Debateram e divergiram, e sem a presença desagregadora de Donald Trump deram um show de civilidade. Em seus países, no mesmo fim de semana, a Eurocopa retomou o espetáculo de jogar em estádios com a presença de torcida. A promessa de retorno à vida civilizada ganhou força com a ausência de Trump e a vacinação contra o coronavírus.
E nós, aqui, lidando com o pesadelo: o golpe virá antes, durante ou depois da eleição presidencial de 2022? Naquele mesmo fim de semana, para sublinhar nossa anormalidade, um surto de Covid-19 atingia atletas e delegações da Copa América, arranjada às pressas num país derrotado pela pandemia. Enquanto os líderes do G7 anunciavam a doação aos países pobres de 1 bilhão de doses de vacina, Bolsonaro regia em São Paulo, onde o governador priorizou a vacinação, um coro de motoqueiros que gritava: “Ei, Doria, vai tomar no cu.”
E o golpe é para quando?
Na fábula do escritor russo Ivan Krylov (1769-1844), um homem encontra um amigo depois de passar três horas no museu de história natural. O amigo lhe pergunta como foi a visita:
– Vi tudo que havia para ver, examinei tudo cuidadosamente – responde ele, ainda fascinado pela experiência. – É tudo tão espantoso que, honestamente, não tenho palavras para descrever nem a metade. A natureza é maravilhosa na sua imensa diversidade.
Depois de ouvir o homem contar que viu insetos diminutos, menores que a cabeça de um alfinete, que examinou pássaros, borboletas, besouros, alguns verdes como esmeraldas, outros vermelhos como coral, o amigo indaga:
– E você viu o elefante? O que achou? Aposto que sentiu como se estivesse olhando para uma montanha!
– Elefante? – pergunta o homem, intrigado. – Tem certeza de que havia um elefante?
– Claro!
– Bem – diz o homem, envergonhado. – Então não conte para ninguém, mas o fato é que não percebi o elefante.
Troque-se “museu de história natural” por “Palácio do Planalto”, e “elefante” por “golpe”. Não significa que, entre nós, ninguém esteja vendo que os planos golpistas de Bolsonaro já estão do tamanho de uma montanha. Ao contrário. Fala-se do golpe em reuniões de trabalho, em encontros casuais, almoços de família, mensagens de WhatsApp. Nos jornais, não se passa um dia sem que algum colunista escreva alertando para o golpe. O assunto, como diz a música, anda nas cabeças, anda nas bocas.
As evidências são himalaicas. Bolsonaro está promovendo o mais fenomenal aparelhamento do Estado brasileiro desde o início do período democrático. Como convém, começou pelos órgãos de fiscalização. Capturou nacos da Polícia Federal, da Receita Federal, da Procuradoria-Geral da República – hoje todos a seu serviço e de sua família. Dois exemplos de como atuam. No primeiro, chinfrim, um bolsonarista vigarista inventou um “documento” dizendo que o número de mortos pela Covid-19 estava inflado e fez de conta que se tratava de análise oficial do Tribunal de Contas da União. Mesmo avisado sobre a trapaça, Bolsonaro continua buzinando os dados falsos. No segundo, a coisa é pesada: alertado por um servidor e um deputado bolsonarista de que se armava uma maracutaia milionária na compra da Covaxin, a vacina indiana, Bolsonaro, “o incorruptível”, não moveu uma palha para acionar “sua” Polícia Federal. Agora, com o caso revelado, acionou-a para esmagar os denunciantes.
À medida que o golpe avança, a turma sente-se mais à vontade e radicaliza mais um pouco, o que, por sua vez, retroalimenta o próprio golpe. É uma escalada, coisa essencial para produzir o moto-contínuo que caracteriza os movimentos autoritários. O deputado Ricardo Barros (PP-PR) disse até que “vai chegar uma hora” em que eles deixarão de cumprir decisões do Supremo Tribunal Federal. O sujeito é líder do governo na Câmara. O empresário bolsonarista Otávio Fakhoury foi flagrado numa investigação discutindo a dissolução do Supremo e do Superior Tribunal de Justiça com o ex-deputado Roberto Jefferson, o presidente do PTB cuja porra-louquice golpista é de tal ordem que já preocupa até aliados. Juntos, Fakhoury e Jefferson não derrubam um síndico, mas são uma expressão da espiral golpista.
O mais relevante – e notório – é o conluio com os policiais militares. Bolsonaro os corteja não porque sejam muitos, mas porque são armados e nutrem sua base miliciana. Deu-lhes uma previdência melhor do que a dos demais brasileiros, aumentou o salário da PM do Distrito Federal, a única sustentada pela União, e agora planeja lhes oferecer financiamento de 100% da casa própria. Nem os pobres do Minha Casa Minha Vida, nem mesmo eles, que amargam o pior da desgraça brasileira, receberam tratamento tão privilegiado. As razões do privilégio se medem em calibres. Incensados pelo presidente, os policiais saem por aí estufando o peito e delinquindo. Cegam cidadãos no Recife, prendem quem chama Bolsonaro de “genocida” em Goiás. São o “cabo e o sargento” da baderna.
No início de junho, deu-se o grande avanço. O comandante do Exército, Paulo Sérgio de Oliveira, pressionado pelo presidente, resolveu: o general da ativa Eduardo Pazuello, que participou de um ato político ao lado de Bolsonaro, não havia participado de um ato político ao lado de Bolsonaro. Feita a genuflexão do golpe, arquivou o processo e decretou cem anos de sigilo sobre os documentos. Não há Forças Armadas sérias no planeta que deixem de punir um ato tão afrontoso de indisciplina. Bolsonaro, esperto, nem comemorou sua vitória abertamente. Ele, que povoou o governo com 6 mil militares em cargos civis, dos quais quase quatro centenas ocupam postos-chave, achou mais prudente evitar demonstrações públicas de que a anarquia nos quartéis é do supremo interesse do golpe.
Com o apoio armado, a gangue extremista ouriçada e o Estado aparelhado e militarizado, a última cartada para o golpe é o incêndio do Reichstag. Até aqui, ele se chama “fraude eleitoral”, aquilo que Bolsonaro diz ter ocorrido em 2018, mas nunca apresentou um fiapo de prova. Se não for atropelado pelo impeachment, que ganhou novo impulso com o escândalo da Covaxin, o voto impresso, que vem sendo discutido no Congresso para entrar em vigor já na eleição de 2022, será a cereja do golpe. Bolsonaro já disputou seis eleições com urna eletrônica e ganhou todas. O barulho que faz para defender o voto impresso vai muito além do mero registro em papel. Tanto que o discurso muda segundo as conveniências. “Primeiro queriam cédulas, depois queriam voto impresso e, agora, querem voto auditável”, lembrou Luís Roberto Barroso, presidente do Tribunal Superior Eleitoral, cuja defesa da lisura da urna eletrônica tem sido quixotescamente solitária.
O objetivo de Bolsonaro – já em parte atingido – é plantar a semente da suspeita de que as eleições podem ser fraudadas, preparando desde agora o terreno para virar a mesa, caso seja derrotado em 2022. Não é um segredo. Na sua live do dia 17 de junho, disse que se não houver mudança na forma de votar “pode um lado ou outro não aceitar” o resultado e “criar uma convulsão no Brasil”. A frase não é o alerta de um estadista preocupado com a paz nacional. É um protocolo de intenções. A jornalista Malu Gaspar, de O Globo, informa que as 27 superintendências da Polícia Federal já foram orientadas a reunir todas as denúncias de fraude eleitorais recebidas desde 1996.
O roteiro é manjado e integra a cartilha clássica dos neogolpistas. Se chegar vivo à eleição e não conseguir passar para o segundo turno ou perder na rodada final, Bolsonaro dirá que a eleição foi roubada e “ponto final”. É a “convulsão”. É a senha para o golpe. Na verdade, a senha pode vir antes mesmo da eleição, caso sua derrota seja pedra cantada. Mas pode ser depois do segundo turno ou talvez na virada para 2023, quando o eleito deve assumir. Há múltiplas possibilidades, exceto uma: a de que Bolsonaro, derrotado, reconheça a vitória do adversário e vá para casa.
No entanto, a oposição viu o elefante, sabe que está do tamanho de uma montanha e continua operando como se o Brasil fosse aquela democracia de pouco tempo atrás. Talvez seja a síndrome da normalidade. Enquanto saboreia a liderança nas pesquisas, Lula viaja o país e negocia apoio para o segundo turno. Ciro Gomes, do PDT, já contratou marqueteiro. Os tucanos estão em pé de guerra para escolher seu candidato nas prévias do fim do ano. Cada um vai cuidando dos seus interesses eleitorais e partidários, acreditando que o país poderá eleger um novo presidente em outubro de 2022 e empossá-lo em janeiro de 2023.
No dia 16 de junho, uma penca de líderes partidários fez uma reunião para discutir uma “candidatura de centro”. Estavam lá gente do PSDB, do DEM, do PV, do Cidadania, do Podemos, do MDB e do SD. Não chegaram a conclusão nenhuma, mas almoçaram em torno de um consenso: é preciso encontrar um nome para romper com a polarização do “bolsopetismo”. O Novo, que não estava no encontro, faz o mesmo discurso. Depois que João Amoêdo desistiu de ser candidato, a legenda mandou dizer que continua “trabalhando na construção de uma alternativa ao bolsopetismo para 2022”. Os líderes desses partidos habitam o mesmo planeta que os brasileiros e os venezuelanos, mas não conseguem superar a esparrela de que o problema do Brasil é o “bolsopetismo”. Isso é conversa fiada de quem continua intubado pela patologia do antipetismo. O problema do Brasil é a morte lenta, gradual e segura da democracia.
A busca pela “terceira via” não é uma tolice porque seu candidato está destinado a perder nas urnas. Pode até ganhar. É uma tolice porque é mais fácil vencer do que tomar posse. Seus defensores ainda vivem a fantasia de que Bolsonaro está no poder como um dique contra o PT, apenas contra o PT. Imaginam que, se o vencedor de 2022 for qualquer outro nome que não Lula, o candidato Bolsonaro, civilizada e democraticamente, passa a faixa ao futuro presidente. No rumo que as coisas vão, e as coisas não param de ir nesse rumo, Bolsonaro não passa a faixa para ninguém. É possível que só um candidato apoiado por uma vigorosa frente democrática, sólida e ampla, tenha condições (e olhe lá) de ganhar e tomar posse. Uma frente ampla mesmo, no manual de Israel.
Quem pensa que bastará juntar o conjunto dos democratas no segundo turno, formando uma aliança de ocasião, talvez esteja acreditando que o elefante de Krylov foi passear na Cornualha. Não foi. Ele está aqui, robusto como uma montanha. Sentado aí do seu lado e debochando de políticos do tamanho da cabeça de um alfinete.
Fonte: Piauí Folha