Após ler notícias sobre um tal apartheid que os moradores da Península em São Luís querem impor aos moradores da periferia, muito me custa acreditar que esse tipo de bairrismo que subleva motivos de ordem étnica e social esteja em curso em nosso tempo e logo na capital maranhense, cidade onde a miscigenação intensa é subjacente a todas as camadas sociais.
A Ponta d’Areia (sem d maiúsculo e com apóstrofo como regula a língua de Camões) é, como o próprio nome sugere, um depósito de sedimento clástico, aluvionado após milhares de anos, formado em paralelo a barra na desembocadura dos rios Anil e Bacanga.
Ao tempo dos tupinambás que dominavam a ilha de Upaon Açu, chamava-se Jeviré e serviu de porto estratégico para seus amigos jurujubas (“papagaios amarelos” – em alusão ao cabelo dourado dos franceses bretões), assim, nos primeiros séculos de colonização do Maranhão, a Ponta com suas dunas cobertas da típica vegetação rasteira de restinga, serviu de sentinela para observar o tráfego marítimo na baía e na entrada do Rio Maiove (Anil). Portanto, Jeviré pertence primordialmente aos tupinambás e aos caboclos nascidos do consórcio entre índios e franceses, cujo DNA é remanescente no sangue de milhões de maranhenses.
Ainda no século XVII, após a reconquista portuguesa, a Ponta passou a chamar-se de João Dias e lá edificou-se o forte de Santo Antônio, tendo sido nele instalado um quartel, um paiol de pólvora e de cujos baluartes se apontavam enormes canhões que defendiam a entrada da cidade de São Luís.
O nome Ponta d’ Areia inspira poesia, traduzindo de forma genuína a paisagem desvelada ao olhar distante de quem adentrava nas águas ludovicenses. Circundadas de cajueiros e guajirus, os morros de areia branca resplandeciam sob luz do luar. Na sua praia bonita e selvagem, as ondas bravias arrebentavam deixando um extenso campo lavado onde os pescadores arrastavam nas suas redes siris e camarões, ganhando de forma árdua, mas não menos honesta o seu sustento.
Nos anos 70 e 80, a ponta ainda estava a salvo da especulação imobiliária, mas já apresentava uma desordenada ocupação urbana. A presença humana triplicava aos fins de semana, sobretudo por causa dos clubes de reggae, ritmo jamaicano envolvente que era parte inerente da cultura praiana de São Luís até o começo dos anos 2.000.
Após a revitalização do entorno da Lagoa da Jansen (de fato uma laguna), os interesses imobiliários fizeram da Ponta o metro quadrado dos mais caros do Nordeste. Clubes de reggae, quiosques de madeira, ranchos e malocas foram banidos do local. Logo, se assistiu subirem construções de mais de 10 andares, gabarito superior ao permitido pelo plano diretor da cidade, que é de até 8 pavimentos, obedecendo a formação geológica da ZR2, perímetro que compreende a Ponta. Por esta razão, não raro há desabamentos, pisos que afundam e outros danos estruturais nas edificações.
Na últimas décadas, o mar começou a tragar a Ponta que, na iminência de sucumbir ao avanço das ondas, experimentou a construção de uma obra providencial, o espigão costeiro. O espigão permite uma deslumbrante vista que logo virou badalado ponto turístico e, por conseguinte, voltou a valorizar os imóveis da área.
Voltando a descabida questão separatista, cabe a pergunta: a quem pertence a Ponta d’Areia? Será que ela pertence mais a quem tenta apagar seu nome original substituindo-o por Península? Península talvez agrade mais aos investidores. Ponta d’Areia revela-se nativo, popular, velho e atrasado, justamente o oposto do marketing imobiliário que vende novidade e progresso, mesmo que arquitetura milionária solape os vestígios históricos, a memória e a identidade. Tem sido assim com a Ponta. Há alguma culpa no coração dos que lá residem?
É no mínimo obsceno querer vetar a todo cidadão ludovicense o direto a qualquer espaço da cidade. Banir pessoas e proibí-las da livre circulação transformando uma área pública e deflagradamente histórica em um condomínio particular para atender aos caprichos de uma minoria endinheirada é uma empreitada racista e preconceituosa.
Enquanto o mundo inteiro constrói narrativas de convívio harmonioso, quando a Europa recebe imigrantes africanos e árabes, quando as megalópoles do século XXI mais parecem Babéis multi-raciais, temos este disparate de um povo MESTIÇO, MIS-CI-GE-NA-DO, que se acha caucasiano diante daqueles que considera “encardidos”. Já não basta o preconceito de origem geográfica que pesa sobre os nordestinos no Centro Sul? E desde quando dinheiro embranquece? Ser branco faz de alguém classudo? Vou parar por aqui para continuar politicamente correto.
Fabio Lindoso, um maranhense “encardido”, retirado no Rio de Janeiro e que já marcou seus pés muitas vezes na Ponta d’Areia.