A semana que passou trouxe consigo um gosto acre de despedida involuntária para todos nós da Academia Nacional de Medicina. Perdemos o acadêmico e confrade Ricardo José Lopes da Cruz, secretário geral daquele augusto sodalício, vítima de Covid-19, no último dia 8. Médico festejadíssimo, ostentava um currículo impecável e era extremamente querido por todos.
À perda irreparável do ilustre confrade somam-se as partidas de Hiram Silva Lucas, Marcos Fernando de Oliveira Moraes, Eustáquio Portela Nunes e Hildoberto Carneiro de Oliveira, também integrantes da ANM. O destino encarregou-se de lhes paralisar os passos, neste 2020.
De convivência mais recente com Ricardo, na Casa que nos irmanou, sensibilizaram-me muito as declarações de afeto dos demais confrades. A doença maligna e silenciosa, radical em sua contaminação, ignora que vitimou um dos maiores cavaleiros defensores da vida. Ricardo passa a integrar a estatística de 180 mil vítimas fatais da pandemia que colocou o mundo de joelhos, mesmo que alguns insistam em não enxergar o óbvio. Sem remédios específicos ou vacina ainda disponíveis, as medidas preventivas – como distanciamento social, uso de máscaras, desinfecção de objetos e superfícies, somadas à higienização constante das mãos – são nossas únicas aliadas, a despeito da necropolítica praticada em algumas esferas.
A morte de Ricardo é mais um aríete para nos despertar – nós, médicos; nós, cidadãos; nós, humanos – da indolência e da apatia, ao assistirmos, repetidamente, os noticiários que informam outras vítimas. Lembro da escrita de John Donne e sua obra que registra suas devoções – exatamente 23 – para os dias em que esteve internado. Donne se solidariza e se irmana com o sofrimento de outros seus iguais e cunha a constatação que tornou célebre a obra: “(…) a morte de todo homem me diminui, porque sou parte na humanidade; e então nunca pergunte por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”. A certeza é uma só: todos somos iguais, a morte nos limita. Séculos mais tarde, o escritor americano Ernest Hemingway publicaria o livro com o título “Por quem os sinos dobram”, trazendo suas impressões sobre a guerra civil espanhola.
Não é porque estamos aqui, vivos, que devamos nos esquecer do perigo que nos ronda diariamente; da dor que invade, neste instante, outros lares e dos porta-retratos que serão lembranças dolorosas na sala de estar de outras famílias, enquanto muitos de nós se preocupam tão somente com o cardápio da ceia de natal ou com o lugar onde passar o Reveillon. Estamos todos presos à mesma sina. Somos todos integrantes de idêntica condição de incertezas e desafios.
O passado é professor competente. São próprias de seu magistério as lições de outras situações semelhantes, vividas em solo brasileiro. Com uma escrita arguta e peculiar, as escritoras Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Stariling apresentam em “A bailarina da morte: A gripe espanhola no Brasil”, disponível no formato e-book, uma descrição acerca da doença que assolou o Brasil, no início do século XX até os idos de 1919, deixando um rastro de morte, miséria e muita briga política. No olho do furacão, a população pobre e desassistida.
Abstraídos o calendário e o nome da doença, tem-se a impressão de que as querelas retratadas foram fruto da observação, deste 2020 e que a doença se chama Covid-19. Vamos olhar em volta a realidade, verificar o que acontece no entorno. Palavras mágicas não têm o poder de fazer desaparecer o vírus.
Das lágrimas alheias, devemos tomar-lhes as lições. Mais do que números, cada vida ceifada deixou projetos inconclusos, sonhos a alcançar, dias a somar no calendário dos anos. A mitologia grega insculpida em Élpis, a esperança, foi a única que sobreviveu à insensata decisão de Pandora em abrir a caixa recebida dos deuses. Se o presente nos parece sombrio e aterrorizante, façamos as pazes com ele. Tenhamos paciência. E que a esperança não nos abandone, mesmo sabendo que as palavras não amenizam os fatos.
Natalino Salgado Filho
Médico nefrologista, reitor da UFMA, titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina