Não foi preciso muito tempo para perceber que criatividade – possivelmente alimentada pelo tédio – não seria problema na quarentena. Atletas pelo mundo inteiro improvisaram cestas com cestos de roupa e bolas com meias, fizeram todo tipo de dança em redes sociais e até se tornaram gamers. Tudo para combater a inatividade. No entanto, para quem precisa de impecável forma física para trabalhar, estar em movimento não é apenas um anseio ou uma iniciativa válida. É uma necessidade. Eles precisam continuar sob olhares atentos, só que por meio de uma tela.
A preocupação mais imediata é com o corpo e o condicionamento, carga recebida por preparadores físicos e fisioterapeutas. São provavelmente os profissionais mais exigidos desde a adoção da quarentena em massa. O brasileiro Claus Antunes, assistente de preparação física do Denver Nuggets – onde trabalha com o conterrâneo Felipe Eichenberger – relata que, nas primeiras semanas após a suspensão da temporada da NBA, o dia ficou pequeno para tantas responsabilidades. Foram várias ligações para estabelecer uma estrutura para os treinos caseiros, além de contatos da imprensa com dúvidas. Claus diz que chegou a se sentir mais exausto do que quando trabalhava presencialmente. Então, estabeleceu alguns limites, como o máximo de uma entrevista por dia.
“Decidi cuidar um pouco de mim para poder cuidar da galera”, revela.
Os cuidados vêm em forma de conversas constantes por aplicativos, sejam em áudio ou vídeo (Whatsapp, Zoom, Skype, Google Hangouts, entre outros, os mesmos que temos usado para fazer entrevistas ou para bater papo com amigos, por exemplo). É preciso estar conectado e presente quase o tempo todo, respondendo às dúvidas e tranquilizando os atletas sempre que possível.
“Tem muito cara que fala: ‘Quero puxar um pouco mais. Estou me sentindo fora de forma’. A gente responde: ‘Calma, vai ter tempo’. Temos que usar a situação para melhorar profissionalmente. Aprendemos que a comunicação tem que ser mais afiada com os jogadores. Menos palavras, mais direção, mais significado”, expõe.
No Denver, Claus trabalha com o pivô sérvio Nikola Jokic, considerado uma das principais estrelas da liga, que costuma ter a forma física frequentemente contestada por não ter um biotipo atlético e parecer estar acima do peso. Nesse momento, segundo ele, não há uma preocupação especial com o jogador por conta disso.
“A mídia critica o Nikola mas a produção dele sempre foi positiva. No final das contas, eles não entendem de preparação física, a nossa percepção é a que vale'”, diz.
A percepção de Claus é que não há por que construir planos de treinos pensando no retorno às quadras em uma data específica. Desde que anunciou a paralisação dos jogos, a NBA evitou publicamente atribuir prazos para reavaliação da situação, embora isso obviamente esteja sendo discutido. Enquanto isso, o brasileiro julga que existe uma forma mais adequada de encarar o momento.
“Quando as coisas estão indefinidas e não sabemos quando a temporada vai voltar, temos que tentar trabalhar um dia de cada vez. A ideia principal é não desgastar os atletas demais e ao mesmo tempo não fazer de menos. Encontrar um ‘banho morno’. A gente não tem meta agora. A meta é manter os jogadores ativos”, relata.
Preparar-se para o desconhecido: um desafio
Se nos Estados Unidos basicamente não há informação alguma sobre que rumo a temporada irá tomar – se de fato recomeçar -, no Novo Basquete Brasil (NBB), mesmo ainda sem data para volta às atividades, há pelo menos um princípio de definição. Com os clubes tendo entre três e seis jogos por realizar até o fim da fase de classificação, foi decidido que, em caso de um eventual retorno, o campeonato seguirá já a partir dos playoffs. Ou seja, a temporada efetivamente acabou para quatro times, que não ficaram entre os doze primeiros: Brasília, São José, Basquete Cearense e Pato Basquete. Quem segue na disputa ainda tem muitas incertezas.
“Caso realmente retorne, tem várias possibilidades. Pode ser jogo único, pode ser melhor de três. Independentemente disso, não vamos voltar num cenário ideal. É muito difícil manter um atleta em condições de ter alta performance quando ele está em casa. Já são mais de 15 dias. Mas estamos tentando fazer o melhor possível”, diz Douglas Lazar, preparador físico de Franca, que fechou a fase de classificação em segundo lugar e, supostamente, espera pelo vencedor de um confronto entre Corinthians e Unifacisa.
Em uma função em que o contato humano é fundamental para se compreender a dimensão de um problema e a possível solução, computadores e celulares oferecem barreiras sensíveis.
“O nosso contato é uma das ferramentas que temos para ter uma percepção com relação a recuperação, força, outras coisas. Tivemos que nos adaptar. Tentamos fazer isso através de vídeos de exercícios, conversas por vídeo, sempre tirando dúvidas e fazendo orientações. É o que conseguimos fazer”, revela.
A situação na Liga de Basquete Feminino (LBF) é semelhante, mas não igual. A liga tinha acabado de começar a temporada quando a pandemia da covid-19 forçou uma paralisação. Apenas três jogos haviam sido realizados. Já se sabe que nada será retomado até, pelo menos, 30 de abril.
“De fato, todo mundo vai ‘destreinar’. Isso é inevitável. Com as estratégias de treino em casa, a gente busca minimizar essas perdas. As ligas que já estavam chegando aos playoffs estavam em outro momento, é aquele em que buscamos lapidar os atletas para deixá-los no pico do desempenho. É um momento especial onde não podemos falhar. No nosso caso foi diferente. Tínhamos cerca de 15 dias de trabalho, apenas um jogo realizado. É um momento em que a gente busca dar uma base para a equipe sustentar o campeonato inteiro”, detalha Samir Sotão, preparador físico do Sampaio Basquete.
Samir conta que a colaboração via internet não é algo inédito, já que antes de as atletas se apresentarem para a pré-temporada é feita uma programação para que elas se cuidem e não cheguem “zeradas”. Mas isso, geralmente, tem como suporte as academias, espaços que não estão funcionando devido às recomendações de isolamento social. Entre as ferramentas que têm ajudado a não deixar ninguém parado, Samir destaca o app Homecourt, da NBA.
“Tem diversos programas direcionados por velocidade, agilidade, prevenção de lesões e aspectos técnicos também”, diz.
‘Não pirar’ e ‘não engordar’
Estar em movimento é apenas um dos mandamentos para um atleta que sabe que não está atuando, mas também não está de férias. É preciso se cuidar para manter a alimentação e o equilíbrio mental o mais próximo possível do normal. Nem todas as equipes do NBB e da LBF possuem profissionais destas áreas. Algumas têm os dois, outras têm somente de uma, ou da outra, e algumas nenhuma das duas. Também cabe ao atleta procurar esse tipo de auxílio. Eles precisam assumir mais as rédeas desses processos. Então, também chegam cheios de dúvidas e demandas.
Thi Arruda é treinador mental do Corinthians. Trabalha essencialmente com meditação em alta performance há 16 anos. Em épocas normais, é um acompanhamento tão intenso quanto o de um preparador físico.
“Todos os dias, quando eles vão entrar na quadra, fico com eles 15 minutos e depois mais 10 minutos ao final. Todos os dias. Antes dos jogos, entro 10 minutos antes de o (técnico) Bruno (Savignani) falar com eles. Em jogos muito importantes, entro também durante o intervalo”, revela Arruda.
Segundo ele, a maioria dos trabalhos que faz já é à distância como, por exemplo, com a lutadora do UFC Janaisa Morandin, que mora nos Estados Unidos. No momento, o Corinthians ainda não estabeleceu uma nova rotina de trabalho para o profissional, o que vem sendo discutido. Ele faz um acompanhamento específico com o armador Arthur Pecos.
“Considero que são três fatores sempre: físico, emocional e mental. Um desencadeia um efeito no outro. Se não está gastando energia física treinando, naturalmente ele fica ansioso, o que é emocional. Com mais ansiedade, a mente fica mais inquieta. Como eles têm muita energia, precisam canalizar isso. Nesse momento, nossa equipe de preparação física está ‘detonando’ os atletas com os treinos em casa, justamente para isso”, diz.
Patricia Müller, nutricionista da equipe do Blumenau, foi mais uma a perceber que a jornada online acaba estendendo o tempo disponível de profissionais que se dispõem a ajudar. Mas tem tirado isso de letra. Segundo ela, existem dificuldades maiores que acabam limitando o alcance da análise que ela consegue fazer.
“Não posso fazer a medição das pregas cutâneas e circunferências, nem o uso da balança de bioimpedância. Principalmente para atletas, acabamos perdendo um pouco o acompanhamento da evolução da composição corporal, por meio do percentual de gordura e massa muscular, que é de suma importância para o rendimento delas. Estou realizando o acompanhamento por fotos da balança e do corpo de antes e depois. E por videochamada consigo seguir acompanhando a evolução através de análises que já realizava de forma presencial, como qualidade da pele, cabelo, unhas e língua”, explica.
Outro desafio é a questão da suplementação, que é planejada de acordo com a carga de treinos e jogos. Como não há data nenhuma no horizonte, isso teve que ser realinhado. Por outro lado, a situação exigiu das atletas uma proatividade maior na hora de pensar as refeições.
“Algumas não gostam de cozinhar ou não tinham tempo para preparar as refeições. A parte boa é que agora provavelmente têm mais tempo para pensar e aplicar uma alimentação mais saudável. Quem almoçava em restaurantes, onde era possível escolher tudo o que iriam comer, agora está recebendo a alimentação em forma de marmita, onde o próprio restaurante determina o que será servido. Isso pode comprometer a variedade alimentar, e também alterar a proporção dos nutrientes nessas refeições. De qualquer forma, muitas lojas de suplementos e restaurantes saudáveis estão realizando o serviço de delivery, o que auxilia muito o atleta em manter os hábitos saudáveis e alimentação focada na performance”, revela.
Quem não tem tanta preocupação com esses fatores são os técnicos. No entanto, eles também precisam manter a cabeça ocupada. Ou, simplesmente, não querem se desligar totalmente. Tanto na continuação do NBB (em que, teoricamente aguarda o vencedor de Botafogo e Rio Claro), quanto da Champions League Américas (está na final à espera de Quimsa ou San Lorenzo, ambos da Argentina), o técnico do Flamengo, Gustavo de Conti, segue de olho nos possíveis adversários. Mais tempo em casa é mais tempo com a família, mas também para assistir a vídeos.
“Fico vendo os jogos dos adversários e também jogos antigos nossos, tendo ideias do que fazer mais para frente. Enquanto os jogadores estão com orientação do preparador físico e do fisioterapeuta, nós da comissão técnica estamos fazendo isso. Não tem nada de basquete ao vivo, nenhuma novidade, então estamos imaginando nossos futuros adversários. Na hora que voltar os treinamentos e a gente puder voltar a jogar, já vamos estar preparados”, acredita.
Edição: Cláudia Soares Rodrigues
(Agência Brasil)