O Dia do Animal, que se celebra há 90 anos, é uma comemoração global à vida de todas as espécies. É um alerta para as necessidades de sensibilização e prevenção, que pretende adequar a convivência mútua num planeta que é partilhado com outros seres vivos, que não apenas a espécie humana.
Apesar dos inúmeros avanços dos últimos anos, designadamente jurídicos, muito ainda existe por cumprir no que respeita à proteção animal. Exemplo disso é a ausência de uma verdadeira política de sensibilização para a forma como devemos tratar e respeitar os animais, independentemente da finalidade com que são detidos.
Por força da Lei n.º 27/2016, de 23 de Agosto, conseguiu-se a implementação de uma medida há muito reclamada pelas associações de protecção animal e pelo PAN, conseguindo incluir a sensibilização para o respeito e protecção animal nas escolas do ensino pré-escolar, básico e secundário. Tal levou a que fosse criado um Grupo de Trabalho com vista à criação do necessário Referencial de Educação para o Bem-Estar Animal (RBEA).
Contudo, não só o Referencial chegou com cinco anos de atraso (!), como é com estupefacção que se verificou que o documento que foi colocado em consulta pública por parte do Governo desvirtua em absoluto o espírito da Lei e do que se deve ensinar às crianças e aos adolescentes sobre os animais e a forma como devem ser tratados.
É um documento que, para além de uma visão marcadamente utilitarista dos animais, está claramente desprovido de rigor técnico, pedagógico e científico, que não inclui a imprescindível participação de profissionais especializados nas áreas científicas e pedagógicas de bem-estar animal, nem de pessoas que trabalham no terreno, fundando-se em dimensões economicistas que deixam de fora as essenciais componentes educativa e humana.
É inaceitável que, ao invés de se ensinar às crianças e jovens os deveres na detenção de animais – desde os mais básicos como proporcionar-lhes alimentação, água, cuidados de saúde; que o abandono e os maus tratos para além de uma crueldade são hoje actos punidos por lei; as diferentes características das espécies, inclusive comportamentais; as espécies autóctones que temos nosso país e algumas delas que se encontram em vias de extinção, sendo fundamental a sua preservação -, se tenha permitido que o mesmo fosse condicionado por uma visão que privilegia a componente utilitarista dos animais e que não reconhece o valor intrínseco da vida animal e o seu direito a uma existência livre de sofrimento.
Não é de estranhar que este referencial, que finge não termos de acabar com as touradas, que vê a caça como entretenimento, que confere normalidade à clausura em parques zoológicos ou delfinários, que legitima atividades lesivas da vida selvagem e não promove o fim de práticas descontroladas tais como a criação ilegal, tenha levado à demissão do Grupo de Trabalho que ficou encarregue do RBEA e à emissão por parte dos mesmos de uma declaração de repúdio, alertando para a ausência de pluralidade de perspectivas, exclusão de conteúdos que convidem à reflexão sobre a legitimidade dos vários modelos de exploração animal, bem como os limites à eficácia dos respetivos mecanismos de regulação, omissão do sofrimento animal provocado pela ação humana, entre outros aspetos.
Ao invés, o RBEA traduz-se numa incompreensível apologia ao consumo da carne e do leite, esquecendo os impactos da produção animal intensiva no bem-estar animal, nas alterações climáticas e na saúde humana, ignorando as recomendações da Organização Mundial da Saúde, atropelando as orientações europeias e fazendo crer que a desflorestação, a destruição da biodiversidade e a degradação dos solos, e o aquecimento global antropogénico fosse mera ilusão!
Não nos esqueçamos que fazer-lhes “menos mal” não equivale a promover o seu bem-estar, mas a perpetuar e legitimar a manutenção de práticas cruéis e desapropriadas face ao conhecimento que temos hoje. É mantê-los reféns de uma pena que não nasceram para cumprir, condicionando toda a sua existência e comportamento e, pior, fazer crer as nossas crianças e jovens de que isso é normal.
É urgente fornecer às gerações futuras ferramentas que facilitem a reflexão, a responsabilização e a partilha, e que promovam escolhas conscientes e informadas, fundadas no humanismo e na solidariedade. Devemos incutir nas crianças e jovens valores tendentes à criação de uma sociedade mais justa, mais equilibrada e mais empática entre os membros da nossa própria espécie, mas que não ignore os animais.
O RBEA deveria pelo menos não legitimar todas estas atividades, limitando-se a cumprir o objetivo que decorre da Lei n.º 27/2016: sensibilizar contra o abandono e os maus tratos e promover o respeito pela vida animal.
Noventa anos depois da instituição do Dia Mundial do Animal, persistem erros civilizacionais que têm tardado em ser corrigidos, não obstante sabermos que os animais sofrem e sabendo que está ao nosso alcance evitar fazê-los sofrer: desde o flagelo do abandono, aos maus tratos e à violência contra animais, como a anacrónica atividade das touradas, as chacinas da caça, de que foi exemplo o Massacre da Torre Bela e que põem em causa a vida selvagem, ao confinamento e condicionamento do seu comportamento em circos ou parques zoológicos, entre tantos outros exemplos que não deveriam persistir em pleno século XXI. Há por isso toda uma efeméride por cumprir, praticamente um século depois.
Fonte: P Megafone