Todos os segmentos e nichos empresariais estão sentindo os efeitos financeiros trazidos a reboque pela pandemia da covid-19, tendo, diante disso, o Poder Executivo Federal tornado quase que cotidiana da função atípica de editar normas legais.
É preciso ponderar que a edição de MP deve observar pressupostos da CF, mas, indo além da correção ou não da adoção MP pelo Governo, a realidade é que o processo de criação de leis pelo Congresso Federal jamais seria capaz de minimizar, sanar e afastar os danos com a mesma rapidez que as MPs.
A edição quase que diária das MPs tenta alcançar a escalada rápida dos prejuízos propagados pela pandemia e conter a quebra de todo um segmento (ou segmentos) empresarial e o mercado que o cerca. Essa tentativa de proteção já ocorreu, por exemplo, com a MP 925/20 (voltada para as viagens aéreas) e a MP 931/20 (voltada para as Sociedade Empresariais Limitadas e Sociedades Anônimas)
A vez agora é do segmento do Entretenimento!
Por meio da MP 948/20 o Governo Federal busca proteger e manter vivo o segmento empresarial de shows, espetáculos e eventos culturais, que alimentam o setor do turismo regional e nacional.
Perceba a lógica: Brasil é um país com feriados culturais e diversos eventos (de pequeno, médio e grande portes), que movimentam toda uma cadeia de empreendedores e até profissionais informais, portanto, se faz necessária atenção especial para esse segmento, visando manter a segurança das relações contratuais instaladas e evitando a ruina dos contratos firmados até a pandemia. Por isso, a MP traz dispositivos legais de instinto colaborativo, que estimulam acordo entre as partes, a manutenção dos valores já pagos pelo serviço (incluindo reservas) ou produto e estipulando prazo para remarcação dos eventos prejudicados.
A magnitude desse segmento chega a movimentar bilhões de reais por ano, sendo o grande mote de atração turística em regiões e cidades-pólo do país, à exemplo do Carnaval e do São João; o carnaval, felizmente, escapou por pouco da calamidade da pandemia, contudo, por outro lado, o período Junino será impactado sobremaneira pela pandemia e pelas restrições às atividades artística e cultural.
Você imagina como estão angustiados os empresários deste segmento, que esgotaram todos os ingressos para seus eventos? Por outro lado, os respectivos consumidores também guardam suas preocupações. E agora?
Como o decreto de calamidade federal foi seguido por diversos decretos municipais e estaduais, o setor de entretenimento, assim como os profissionais e empresários que dependem dele, foram extremamente afetados; desde a empresa de venda de ingressos (on-line ou não) até os hotéis e atividades que dependem a cultura e turismo.
É de se notar que a MP 948/20 tem o mesmo espírito, objetivo e intenção da MP 925/20; enquanto esta intercedeu na relação contratual consumerista de viagens áreas, a MP do Entretenimento vem a incidir verticalmente sobre as relações consumeristas, mas também nas civis e empresariais decorrentes dos eventos culturais e turísticos de entretenimento. De todo modo, se observa que em ambas as MPs o Governo tenta preservar viva da relação obrigacional e vigente do contrato firmado. Nas referidas MPs também se percebe o estímulo na aplicação das boas práticas da autocomposição – do acordo extrajudicial e amigável.
Constata-se que o Governo Federal se preocupa, também, além do cuidado com a manutenção do contrato (mesmo que readaptado), com a possibilidade real de uma avalanche de processos judiciais; por isso, vem estimulando a autocomposição, dando, por exemplo, o perdão de multa e isenção de penalidades que ocorreriam normalmente nestas relações contratuais.
Desta maneira, podemos dizer que a MP 948/20, em vista do cancelamento do evento, prevê, alternativamente, as práticas de:
(i) remarcação das reservas, serviços ou eventos cancelados em razão a estado de calamidade gerado pelo coronavírus. Se essa for a opção escolhida, deverão ser respeitados a sazonalidade e os valores dos serviços originalmente contratados. E, vale salientar, que a remarcação deve ocorrer em até 12 meses a partir do fim do estado de calamidade; ou
(ii) disponibilidade de crédito ou abatimento para outro serviço, reserva e evento. O crédito poderá ser utilizado pelo consumidor no prazo de 12 meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública; ou
(iii) acordo (em termos diversos dos acima) a ser firmado entre a prestadora do serviço/produto e o consumidor. Neste caso fica ao crivo e à liberdade do acordo feito entre o consumidor e o prestador do entretenimento.
Importante destacar que o decreto federal de calamidade pública fixou, por estimativa, por ficção, a data de 31.12.2020 com o encerramento da calamidade relacionada à covid-19.
Nesse sentir, é extremamente importante o consumidor do entretenimento ficar atento neste ponto, porque a MP diz que a opção eleita (acima enumeradas) ocorrerá sem qualquer custo extra, multa ou taxa, mas, desde que o consumidor faça a solicitação (escolha de uma das opções) em até 90 dias, contado de 08.04.2020 (data da entrada em vigor da MP). O empresário do evento também precisa ficar atento a isso, porque se o empreendedor for pró-ativo, entrando em contato com o consumidor, oferecendo ou negociando as opções, certamente, irá economizar despesas extras, tempo e custos em eventual processo judicial e, ainda, fidelizará o cliente.
Na verdade é recomendável que o empresário entre em contato com o consumidor, tentando fechar com ele algum acordo ou alguma das outras duas opções acima, visto que acaso não se efetive quaisquer dar escolhas o prestador do serviço deverá restituir ao consumidor o valor recebido (atualizado pelo IPCA-E), no prazo de 12 meses, também contados do encerramento do estado de calamidade pública (estimado em 31.12.2020, pelo decreto federal).
Em uma visão mais hollywoodiana, a MP vai se aplicar aos eventos de médio e grande porte, tais como as micaretas, shows, rodeios etc. Contudo, ainda, a norma emergencial também poderá ser invocada nas relações cujos tickets são de valor mais ameno, tais como cinemas, hotéis, teatros, parques aquáticos e por todo prestador de serviço e empresa do ramo objeto da MP. Deste modo, pensando em toda a cadeia de prestadores envolvidos no entretenimento, desde os sites de venda de ingressos on-line e até as agências de turismo, que venderam os pacotes de viagens (nesta parte no que não for abarcado já pela MP 925) poderão utilizar da MP 948.
Neste espectro, se analisarmos bem, até aqueles empreendimentos que orbitam, como satélites, os eventos culturais e turísticos, que dependem do entretenimento central, poderão se valer da MP 948, tais como restaurantes, receptivos, passeios, hotéis etc.
A partir da abertura do leque de quem poderá se utilizar da MP do entretenimento, podem surgir algumas dúvidas. Vamos tratar de algumas!
A MP abrange empreendedores do turismo e da cultura, e com relação aos do turismo a MP faz indicações próprias, fazendo uso da relação do art. 21, da lei 11.771/08. Já com relação ao segmento cultural, a MP descreve os eventos nominalmente, sendo estes cinemas, teatros e plataforma digitais de venda de tickets. Neste ponto faço crítica à técnica de redação.
Olhando a relação do dito art. 21, quem está dentro do raio da MP 948/20 é o prestador de serviço de turismo (sociedade empresária ou empresário individual) que exerce atividade econômica de (i) hospedagem, (ii) agência de turismo (excetuado o aplicado pela MP 925/20), (iii) transportadora turística (os receptivos, p.ex), (iv) organizadora de eventos, (v) parques aquáticos e (vi) acampamentos turísticos
Contudo, o parágrafo único do mesmo art. 21 traz extenso rol de outras atividades – tais como: (i) restaurantes, cafeterias, bares e similares; (ii) locadoras de veículos para turistas etc – que poderão se enquadrar no conceito de “prestador de serviço de turismo”, desde que tenham cadastro no ministério do Turismo, além do preenchimento de certas condições, desde que sejam sociedades empresárias.
Disso se constata, portanto, que muitos empresários poderão se valer dos termos da MP 948 para evitar grandes perdas financeiras ou até a credibilidade perante sua base de clientela. Percebe-se, então, que grande parte dos negócios relacionados à cadeia do entretenimento poderá se socorrer das benesses da MP.
No meu entender, o inciso II do art.3º da MP 948, que descreveu rol do que seriam os eventos culturais abrangidos pela MP, deve ser interpretado como exemplificativo (isto é, outros eventos culturais, como os esportivos e religioso) também devem ser abraçados pela MP. Pensar contrariamente a isso seria negar a realidade do próprio mercado (eventos culturais) que a MP tenta protege, o que tornaria a MP uma norma morta para boa parte os empresários do segmento cultural.
Creio que essa e outras lacunas serão resolvidas caso a caso.
Pode haver, ainda, a seguinte dúvida: e como ficam aqueles profissionais que, via de regra, são as atrações principais dos eventos, tais como artistas, celebridades, palestrantes etc? Estes profissionais que, geralmente, aparecem como produto do evento, como instrumento de atração do público, como ficam?
Via de regra o organizador do evento tem, ou deveria ter, um contrato com o artista/palestrante, no qual são inscritas situações de cancelamento, adiamento ou suspensão dos eventos descritos no contrato e as consequências obrigacionais e financeiras de cada fato. Mas isso impede de aplicarmos a MP nesta relação? E se este contrato entre o organizador e o artista/palestrante não existe? Penso que a MP também se aplica nesta relação, a qual não é relação de consumo, sendo um contrato civil ou empresarial – a depender da natureza os contratantes envolvidos.
Assim, se feita a contratação do artista/palestrante antes do início da Calamidade, neste cenário, devido ao cancelamento, adiamento ou suspensão do evento/show, o palestrante/artista não precisará devolver o cachê, ou parte dele, eventualmente recebido, se o evento for remarcado até 12 meses a partir do fim da calamidade pública decretada.
Todavia, do mesmo modo no caso aplicáveis ao consumidor do evento, se o evento não for remarcado o cachê recebido deverá ser restituído em até 12 meses, contados do fim da decretação da calamidade, atualizado pelo IPCA-E.
Ao final, a MP 948/20, em seu art. 5º, fala que a relações de consumo regidas (o que afasta a questão do cachê dos artistas) pela norma provisória finaliza dizendo em vista da aplicação e utilização dos termos da MP ficam afastados os danos morais, multa e outras penalidades, isto é, o consumidor ou qualquer ator da relações de consumo abrangida pela MP renunciam ao direito de indenização por danos morais e sanções, inclusive administrativa como interdição do estabelecimento empresarial, cassação de registro e outras.
O art. 5º, e aqui vai minha crítica, confunde caso fortuito e dano moral, confunde excludente de nexo de responsabilidade com pressupostos da Teoria da Imprevisão e da Teoria do Rompimento da Base Objetiva e, ainda, deixou de fora a relação (não consumerista) entre o artista e o promovedor o evento.
De toda sorte, diante de tudo que temos visto, a MP tem mais pontos positivos do que negativos. Então, usufruam da MP e fiquem atentos aos prazos descritos para tanto.
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*Díbulo Calábria C. da Silveira é advogado especialista em Direito Empresarial e Civil. Sócio-fundador do Calábria e Veloso Advogados e coordenador do setor de Direito Empresarial, Societário, de Franquias e Civil. Procurador de Olinda e Pós-graduado em Processo Civil.
(MIGALHAS)