Como profissional da Medicina, há mais de 40 anos, estou acostumado a lidar com dados epidemiológicos. Mas a geração de profissionais, da qual faço parte, jamais viveu algo semelhante ao que estamos enfrentando. Os números – além de representarem pessoas, vidas, famílias, emoções – são despejados sobre nós, diariamente, sob a instantaneidade do famoso tempo real das tecnologias virtuais. Gráficos e curvas sobem como foguetes em direção ao infinito, ignorando a vida paralisada, mas frenética, dentro dos centros de saúde.
Em contraposição à avalanche de informações, as condições materiais se mostram aquém do desafio. O que temos no front dos hospitais são profissionais que assumiram um lugar de heróis que resistem, a despeito de suas próprias fragilidades. Sob a urgência destes tempos, homens e mulheres, aprendendo as lições do poeta Djavan, guerreiam para superar suas próprias dificuldades e desafiam o ter-que-ter-pra-dar. E aqui me refiro não só à carência material, ou à expertise técnica de cada um; aos necessários artigos que valem quase tanto quanto uma vacina ou medicação específica para a doença, mas também à esperança, ao otimismo e à resiliência ante o brutal desafio. Refiro-me, também e principalmente, ao necessário afeto.
Nossa cultura, certamente, está sofrendo muito. Nós, que somos definidos pela expansividade afetiva, passamos a sofrer de inanição de afeto. Gostamos de abraços e beijos, expressões carinhosas de afeição. Estamos acostumados com aqueles pequenos toques durante uma conversa. Mas este tempo de desafios extraordinários se agrava com os afastamentos recíprocos e com a atitude imprescindível de isolamento social.
Entretanto, não estamos alijados das palavras, da capacidade de manifestação de interesse e da boa preocupação com aqueles que amamos, respeitamos e queremos bem. Precisamos de palavras agora mais do que nunca, para marcarmos presença onde não podemos estar. Um dos mais cultuados pensadores da atualidade, o filósofo sul coreano Byung-Chul Han, alerta para a necessária proximidade, item que apenas os seres humanos podem desfrutar em sua plenitude, o qual já vem correndo risco com os likes do mundo virtual.
Na verdade, uma palavra não é igual ao abraço físico. Mas o silêncio do esquecimento ensina que ser lembrado por alguém é um bálsamo. Então, se os corpos não podem se tocar, os intermediários da tecnologia podem e muito nos ajudar neste momento. As ligações, mensagens, lives podem ser utilizadas de maneira a preservar a relação de amizade e companheirismo; as consultas por telemedicina, já regulamentadas, e o trabalho remoto têm efeitos muito positivos para alimentar a presença do outro nos diversos âmbitos.
Quero destacar aqui o rico espaço de interação disponibilizado pela Academia Nacional de Medicina, nesta época de ausência de contato físico. Os debates virtuais, a troca de reflexões têm nos aproximado ainda mais, numa corrente invisível de fraternidade e as intenções que a movem são verdadeiras e reais. O confrade da ANM Sérgio Novis, numa sensível fala disponível em podcast, lembrava-nos de qualidades que nunca devem ser esquecidas pelos que praticam a Medicina, sendo as mais importantes: a atenção e o interesse sincero pelo paciente.
Trabalho remoto, novas formas de praticar o comércio e de aprender um conhecimento; imersões culturais, adoção de estilo de vida menos perdulário, tudo nos indica que a pandemia pode ter estabelecido outras formas de vivermos o cotidiano, sem jamais esquecer o princípio que nos define como humanidade: médicos ou não, existimos para fazer o bem, espalhar a solidariedade e cultivar a compaixão. Que essas sejam as marcas de um novo tempo para uma sociedade ainda melhor, mais justa e fraterna, onde cada um aprenda a se guiar nos arredores do amor, único lugar onde conseguimos, por meio do afeto, oferecer coragem, quando o que temos é medo.
Natalino Salgado Filho
Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, de Letras do MA e da
AMM.