Se passaram 68 anos entre a primeira vez que o topo do Monte Everest foi alcançado, em 1953, e a primeira vez que uma mulher negra latino-americana chegou ao ponto mais alto da Terra, feito concluído pela brasileira Aretha Duarte no último dia 23 de maio. A jornada de Aretha até o ponto mais alto do planeta começou bem antes de viajar para o Nepal: a montanhista arrecadou dinheiro para a expedição através de reciclagem, atividade que já praticara na infância e adolescência, além de participar em um programa de TV.
Ao longo da campanha do Everest, iniciada em março de 2020, Aretha juntou mais de 130 toneladas de resíduos destinados à reciclagem, reuniu cerca de 600 brinquedos usados e higienizados que foram distribuídos no Natal a crianças da periferia de Campinas e mais de 1.200 livros disponíveis para uma biblioteca comunitária. Após isso, ela também realizou uma campanha de arrecadação na internet, participou do quadro ‘The Wall’, no programa Caldeirão do Huck, da Rede Globo, e, na reta final, conseguiu o patrocínio de sete empresas.
“A principal diferença foi o volume. Na infância, eu queria comprar um par de patins, na adolescência foi uma máquina de lavar. Desta vez, o objetivo era maior e muita gente se engajou. Acredito que esse é um dos caminhos para realizar o que acredito”, relata Aretha sobre o trabalho com reciclagem. Ao fim, a brasileira arrecadou a quantia de R$ 400 mil que precisava e viajou a Katmandu, capital do Nepal, em 2 de abril de 2021.
Aretha precisou ficar alguns dias de quarentena obrigatória, cumprindo norma do governo nepalês, antes de iniciar a subida gradual do campo-base até os campos dois, três, quatro e, finalmente, o cume do Everest. A montanhista venceu a última etapa dos 8.848 metros na manhã do domingo (dia 23), às 10h24, pelo horário nepalês (1h39 da madrugada de domingo no Brasil). Até 2020, apenas 25 brasileiros haviam conseguido chegar ao topo da montanha mais alta do mundo. Destes, somente cinco eram mulheres.
Apesar do valor simbólico, Aretha conta que a escalada do Everest é mais difícil pelo emocional do que pela parte técnica. “É uma montanha extremamente especial, no sentido de ter facilitadores, como a fixação de cordas ao longo de toda a montanha. Então, tecnicamente posso afirmar que não é o mais alto nível. No entanto, questões emocionais, físicas, relacionadas a estrutura, logística, lidar com outras pessoas, como os sherpas (guias locais do Nepal) ou os colegas de trabalho. Então, tem uma série de adversidades, especialmente para a mulher, com questões fisiológicas e bioquímicas envolvidas. Tem momentos que as mulheres são muito mais sensíveis e emotivas do que os homens”, avalia.
Contudo, a brasileira não deixa de valorizar a conquista. “Minha sensação de chegar ao cume do Everest foi de ‘caraca, subi de nível’. Quão difícil é escalar essa montanha. É difícil precisar tudo o que senti, pois a emoção é forte. Mas pensei sobre a minha realização e o quanto ela pode servir de inspiração para as pessoas. As mulheres negras, especificamente, têm de saber disso. Elas não precisam ficar focadas só no sonho grande, mas no próximo passo, e, depois, no passo seguinte, e no outro, com constância e regularidade, até chegar ao objetivo grande. Todas as mulheres podem”, afirmou ao Estadão.
Curiosamente, até pouco tempo atrás, a montanhista brasileira não pensava em subir o pico mais alto do mundo. “Até dezembro de 2019, eu realmente não tinha interesse de escalar o Monte Everest. Achava que as pessoas queriam ir para lá para se autopromover. Eu já tinha ido ao campo base, com mais de 5.000 metros de altitude, em 2013. Mas, em dezembro do ano passado, vendo fotos de expedições no Nepal, vi o Vale do Silêncio, que está a 6.400 metros de altitude, achei impressionante e me arrepiei. Achei lindo e naquele momento quis estar lá. Assim surgiu a vontade de, um dia, escalar o Everest”, diz Aretha.
HISTÓRIA – Antes do Everest, Aretha já havia escalado outras montanhas famosas: Monte Kilimanjaro, maior da África, além de Elbrus (Rússia), Monte Roraima (Venezuela), Pequeno Alpamayo (Bolívia), Vulcões (Equador) e o Monte Aconcágua, na Argentina, o mais alto fora do Himalaia, que ela escalou cinco vezes.
A montanhista relata que sua história com o esporte começou em uma aula durante a faculdade de educação física. “Conheci a modalidade aos 20 anos, quando um professor da PUC de Campinas quis apresentar esportes outdoor para os alunos. Ele nos levou até a Grade6, operadora de montanhismo. Fiquei extremamente apaixonada, pensando: ‘como nunca tinha ouvido falar neste tipo de esporte antes? Tentei me aproximar da empresa, fazendo cursos de escalada em rocha. Depois, trabalhei de modo eventual em eventos corporativos, para, em 2011, ser efetivada. Após ser efetivada, comecei a praticar escalada, trekking e expedições regularmente”, relembra.
PROJETO – Aretha conta que seu maior projeto no momento é uma escola de escalada para jovens da periferia de Campinas. “Justamente para eles conhecerem esse esporte, que é algo ainda distante, não é um esporte tão popular ainda. Daí, podem passar a entender o que é esse esporte, as vertentes, as possibilidades de realização e, quem sabe, se tornarem talentos que nos representem nas Olimpíadas”, afirma. A escalada estreia na Olimpíada em Tóquio e já está confirmada para a edição de 2024 dos Jogos, em Paris.
“O mais importante é ajudar a dar uma vida digna e justa, para que as pessoas entendam a capacidade de se desenvolver. E um centro de escalada pode ajudar nesse processo, não só em Campinas. Espero que seja um projeto piloto que se espalhe pelo Brasil. Nós precisamos encontrar líderes (comunitários) que aceitem a proposta e a implementação e, principalmente, que possam gerir esse projeto de escalada, com foco esportivo, intelectuale cognitivo”, diz Aretha. A primeira parede comunitária de escalada foi instalada em Campinas, ao mesmo tempo em que ela fazia a reciclagem visando o Everest.
Por MA10