Circula nas redes sociais, como sendo da lavra de Fiódor Dostoiévski, a seguinte frase: “A tolerância chegará a tal ponto que as pessoas inteligentes serão impedidas de fazer qualquer reflexão para não ofender os imbecis.” Não há comprovação de que o filósofo russo seja o autor da frase que se encaixa perfeitamente na avalanche de intolerância que avança no Brasil.
Independentemente de quem seja o verdadeiro autor, a mensagem deve servir de reflexão para os muitos episódios de intolerância que temos presenciado nos últimos tempos. O mais recente aconteceu no meu estado, o Maranhão, na cidade de Açailândia.
Em meados de dezembro, o jovem Gabriel da Silva Nascimento, 23 anos, foi agredido dentro do próprio carro ao ser confundido com um ladrão. (confira vídeo ao final do artigo)
Os agressores arrastaram o jovem para fora do carro e desferiram vários golpes, a ponto de a vítima ter declarado que teve medo de morrer. Isso só aconteceu porque negro no Brasil é automaticamente associado ao universo do crime e das transgressões legais.
Temos visto nos últimos tempos inúmeras manifestações antirracistas, mas é preciso reconhecer que o racismo no Brasil continua a correr de forma deliberada, sem que as autoridades tomem as devidas providências legais, punindo exemplarmente quem cultua a intolerância a partir da cor da pele.
A filósofa e professora norte-americana Angela Davis, que concorreu à vice-presidência dos Estados Unidos em 1980 e 1984, é reconhecida por sua militância pelos direitos das mulheres e contra a discriminação social e racial no seu país.
É sua a frase que traduz com precisão o posicionamento que todo ser humano deveria ter diante da intolerância racial: “Em uma sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista.”
Os agressores de Gabriel Nascimento poderão responder na Justiça por tentativa de homicídio, mas não se pode fechar os olhos para o crime de racismo, previsto no artigo 5º, inciso XVII da Constituição de 1988.
“A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”, estabelece a nossa Carta Magna. Esse trecho da Constituição garante o direito à igualdade, diuturnamente desrespeitado no Brasil, assim como em outros países.
O brasileiro enfrenta quase calado, com direito a alguns espasmos no terreno dos protestos, o que muitos chamam de racismo estrutural, sem que exista no âmbito do Estado, como um todo, políticas públicas de enfrentamento desse crime que, na minha modesta opinião, é movido pela hediondez.
A sociedade brasileira convive quase pacificamente com diferenças sociais entre brancos e negros, inegáveis em nosso cotidiano. Essas diferenças podem ser notadas de maneira constante nos campos econômico da educação, da saúde, da moradia e do trabalho.
Não é preciso muito esforço para perceber que pretos e pardos – assim o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística classifica os negros – são minoria na política, nas empresas e em cargos públicos.
Lembro que no último censo demográfico, realizado em 2010, o IBGE classificou 50,9% dos brasileiros como negros. Em 2014, o mesmo instituto informou que 53,6% da população era formada por negros.
Tomando por base os dados de 2014 do IBGE, é inconcebível que o racismo seja tratado com tanto desdém. É preciso reagir a esse estado de coisas, antes que tragédias aconteçam à sombra do racismo.
Não posso deixar de lembrar do caso de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, espancado até a morte, em novembro de 2020, em um supermercado de Porto Alegre. Após desentendimento entre a vítima e uma funcionária do supermercado, seguranças usaram de violência, com a concordância da gerente da loja, que acompanhou o crime sem esboçar qualquer indignação.
Naquele momento, a imprensa noticiou que a morte de João Alberto ocorrera horas antes do Dia da Consciência Negra, o que impulsionou protestos em várias cidades brasileiras, debaixo do mote “Vidas Negras Importam”. Porém, o caso acabou na vala do esquecimento, engrossando as estatísticas policiais.
Não se pode normalizar o que no Brasil tornou-se comum: a intolerância racial. Vidas negras importam não apenas quando um negro morre vítima do racismo. Vidas negras importam o tempo todo, assim como as brancas. Dia da Consciência Negra é todo dia. Ser contra o racismo é uma obrigação diária de todos nós.
Volto a Angela Davis, que em discurso sobre direitos humanos na Universidade Estadual de San José (Califórnia), em 2015, disse: “Se todas as vidas importassem, nós não precisaríamos proclamar enfaticamente que a vida dos negros importa.”
O caso do jovem maranhense Gabriel da Silva Nascimento me leva a resgatar trecho do histórico discurso de Martin Luther King: “Eu tenho um sonho de que meus quatro filhos, um dia, viverão numa nação onde não serão julgados pela cor de sua pele e sim pelo conteúdo de seu caráter.”
Infelizmente, como sempre acontece, Gabriel foi julgado pela cor da pele ao ser confundido com um ladrão.
Concluo este artigo com frase do cantor jamaicano Bob Marley (1945-1981), também creditada ao ex-imperador etíope Hailé Selassié (1892-1975): “Enquanto a cor da pele for mais importante que o brilho dos olhos, haverá guerra.”
* Waldir Maranhão – Médico veterinário e ex-reitor da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), onde lecionou durante anos, foi deputado federal, 1º vice-presidente e presidente da Câmara dos Deputados.