MARIA DA GLÓRIA, 59 anos, deixou feijão e carne já prontos na geladeira e foi buscar o neto de 11 anos na escola. Na volta, era só esquentar e almoçar. Quando chegaram em casa, pouco depois de meio-dia, não encontraram mais a comida, nem a geladeira, nem os pratos, nem a maioria dos móveis e utensílios da residência.
Quase toda a mobília da casa onde Maria da Glória morava com o marido e o neto, na comunidade tradicional Cajueiro, zona rural de São Luís, Maranhão, havia sido colocada em um caminhão de mudança por dezenas de homens pagos pela empresa Terminal de Uso Privado Porto São Luís, a TUP – antiga WPR São Luís Gestão de Portos e Terminais S/A, comandada pelo mesmo presidente do grupo WTorre. A empresa alega ser dona do terreno, onde pretende construir um porto privado com a transnacional chinesa de infraestrutura China Communications Construction Company, a CCCC, sócia majoritária do empreendimento.
Acompanhada pelo neto e vigiada por homens do Batalhão de Choque da Polícia Militar do Maranhão, a então moradora do Cajueiro chorou silenciosamente ao assistir a uma retroescavadeira demolir sua casa em menos de cinco minutos. Foi uma das 22 casas destruídas no dia.
Naquele 12 de agosto de 2019, o Batalhão de Choque foi ao Cajueiro cumprir uma ação de reintegração de posse autorizada pelo juiz Marcelo Oka a pedido da TUP Porto São Luís. Os moradores registraram a violência: spray de pimenta foi usado pelos policiais contra as famílias do local, incluindo crianças, idosos e uma mulher grávida.
Em protesto contra as remoções, cerca de 40 moradores da comunidade acamparam pacificamente em frente ao Palácio dos Leões, sede do governo estadual. A nova manifestação também foi violentamente reprimida com gás lacrimogêneo e balas de borracha. O secretário de Segurança Pública do Estado, Jefferson Portela, estava junto aos policiais acompanhando pessoalmente a operação.
Pressionado nas redes sociais, o governador Flávio Dino, do PCdoB, justificou: “sobre reintegrações de posse: a polícia militar não pode simplesmente se recusar a cumprir ordem judicial. Houve várias tentativas de mediação, infelizmente frustradas. Não cabe ao governador cassar ou suspender decisão de outro Poder. Já expliquei isso em outros momentos”.
Com este argumento jurídico, o ex-juiz federal Flávio Dino procurava isentar seu governo de qualquer responsabilidade. O que não coube no tuíte foi dizer que, graças a uma série de decisões tomadas por ele durante quase cinco anos de gestão, construiu-se o cenário que levou à violência contra moradores do Cajueiro.
Entrevistas e documentos públicos que tive acesso mostram que esses ataques não são um episódio isolado. Eles fazem parte do horizonte político e econômico do governo estadual. Por um lado, a atual gestão responde às demandas do capital internacional – especialmente o chinês – interessado na exploração e escoamento de soja e minério. Por outro, à construção de uma eventual candidatura de Flávio Dino à presidência em 2022.
Há padrões de atuação de secretarias específicas, narrativas oficiais que se repetem, irregularidades que viabilizam empreendimentos e, sobretudo, a ameaça constante e violenta aos direitos dos povos tradicionais, como o do Cajueiro, e aos seus territórios centenários.
Ana Maria Pires Silva, 40 anos, mora na comunidade Jambuca, no município de Bacabeira, a 39 quilômetros de São Luís, desde que nasceu. Outras duas comunidades – Batista e 49 – fazem parte da região, conhecida como Campo de Perizes, onde vivem 43 famílias. É do campo que os moradores retiram seu sustento por meio da agricultura familiar, da pesca, da cata de caranguejo e da criação de pequenos animais, como porcos e galinhas.
No dia 13 de março de 2016, Ana Maria, que é presidente da Associação de Moradores do Campo de Perizes, recebeu com surpresa a visita de um oficial de justiça. Acompanhado por três policiais militares, ele entregou a ordem para que ela, o pai e avô saíssem das suas respectivas casas em 20 dias. Outras 19 famílias teriam de fazer o mesmo.
“Quando você vê 20 dias, você pensa: pra onde eu vou? O que vou fazer? Eu disse: ‘nós não vamos sair daqui, vamos lutar’”, conta Ana Maria. “Meu avô ficou desesperado, revoltadíssimo, dizendo que o suor dele derramado estava indo pro lixo. Ele tinha 92 anos”. O avô entrou em depressão, segundo ela, e disse que só sairia dali morto. Ele faleceu no mesmo ano.
A desapropriação havia sido assinada por Flávio Dino em novembro de 2015. Foi uma surpresa: uma das primeiras ações do comunista quando assumiu, no começo daquele ano, havia sido revogar a desapropriação assinada pelo governo de Arnaldo Melo, que tomou posse após a renúncia de Roseana Sarney. Com o tempo, no entanto, sua gestão se aproximou de investidores chineses – e abriu caminho para eles.
De acordo com os três decretos de desapropriação assinados pelo político do PCdoB naquele ano, nos mais de 1.500 hectares de terras, seria construído o Distrito Industrial Bacabeira II. A finalidade, segundo o decreto, era a “implantação de indústrias de base, bem como atividades complementares ou associadas”. Os moradores das comunidades de Campo de Perizes não foram consultados, nem sabiam da instalação de qualquer empreendimento na área.
A informação oficial só veio, segundo Valdeci Alves Costa, vice-presidente na associação de moradores, depois que ele e Ana Maria buscaram ajuda da Defensoria Pública, da Comissão Pastoral da Terra e da Comissão de Direitos Humanos da OAB. A população, ribeirinha, é considerada uma comunidade tradicional.
Em abril de 2016, a defensoria entrou com uma Ação Civil Pública contra o estado para que as remoções fossem suspensas até que o governo apresentasse um plano de reassentamento para as comunidades. Segundo o defensor público Alberto Tavares, que acompanhou o caso, a implantação do distrito industrial não contava com esse plano, nem com estudos técnicos para o licenciamento ambiental.
Na época, lembra Tavares, o presidente da Emaptentou abrandar a situação. “Em reunião, ele disse que esteve numa comitiva do governo do estado visitando, salvo engano, Taiwan. Ele elogiava muito, dizia que lá havia uma cidade inteligente, e que se iria replicar isso aqui no Maranhão, de modo que não fossem causados os efeitos de um processo de industrialização e urbanização acelerado, desordenado.”
Uma reportagem de 13 de outubro de 2016 do jornal Valor Econômico afirma que a empresa chinesa CBSteel avançava nas tratativas com o governo do Maranhão para instalar uma planta siderúrgica em Bacabeira com investimento de até US$ 8 bilhões.
Na noite de 6 de abril de 2017, Dino acompanhou em São Paulo a solenidade de assinatura do acordo de investimento entre CCCC e WPR – hoje TUP –, responsáveis pela construção do porto privado. “Fico feliz que o Maranhão tenha sido escolhido para sediar tão importante investimento e louvo a capacidade empreendedora da WPR”, declarou.
Entre junho e setembro de 2017, duas comitivas do governo do estado, lideradas pela vice-governadoria e pela Secretaria de Indústria, Comércio e Energia, a Seinc, estiveram na China para negociar com a CBSteel. Em dezembro, Dino ratificou os contratos. Entre os documentos está um memorando de entendimento “relativo à construção da Cidade Inteligente no município de Bacabeira”, firmado entre Maranhão, Bacabeira, CBSteel e a empresa chinesa CCCC South America Regional Company.
O projeto de parque industrial está parado. A remoção das famílias das comunidades Jambuca e Batista foi suspensa em 2016 pelo governo estadual após a ação da defensoria. “As famílias continuam lá. Não tanto por bondade do estado, mas talvez por desinteresse do empreendedor chinês”, diz o defensor Alberto Tavares.
É quase impossível saber o status dos projetos. Há mais de um ano tento obter informações sobre a CBSteel em Bacabeira junto ao governo do estado, via assessoria de imprensa, ouvidoria e por meio da lei de acesso à informação, sem resposta. A Secretaria de Comunicação Social e Assuntos Políticos, a Secap, se limitou a dizer, em uma nota enviada em dezembro, que “o governo do Maranhão e a CBSteel têm um pré-acordo firmado de interesse na implantação de siderúrgica na região, que cumpre os parâmetros da legislação brasileira.”
Cajueiro não teve a mesma sorte. Apesar dos ministérios Públicos Federal e Estadual e da Defensoria Pública do Maranhão afirmarem que as licenças emitidas pelo governo são irregulares, o processo avançou. Os moradores haviam conseguido em 1998 com o próprio estado um título de propriedade das terras – mas o documento foi ignorado pela atual gestão, que classificou os moradores como “posseiros”.
Além disso, os títulos de propriedade apresentados pela empresa interessada na área são alvo de investigação por suspeita de grilagem. A WPR – hoje TUP – tentou impedira realização da perícia nos documentos, alegando que o judiciário gastaria tempo com um processo “inútil”. O pedido da companhia foi negado pelo Tribunal de Justiça. A investigação criminal está sob sigilo.
Em nota, a Secretaria do Meio Ambiente apenas disse que as duas licenças ambientais expedidas não têm poderes para substituir o título de propriedade das terras, “uma vez que o solicitante da autorização não necessariamente é o proprietário do terreno”, e que seu corpo técnico analisa a demanda de acordo com as documentações apresentadas pelo requerente. Em outras palavras, a pasta se exime de qualquer responsabilidade por viabilizar a instalação de um empreendimento que agrava conflitos fundiários e viola direitos de comunidades tradicionais.
Por The Intercept