O paulista Alexandre Galgani não ostentava um semblante tranquilo ao final de seu 20º disparo efetuado na última terça-feira (27.08), pela prova da carabina de ar deitada mista 10 metros SH2. A disputa foi realizada no belíssimo estande da Base Aérea Las Palmas, palco do tiro esportivo nos Jogos Parapan-Americanos Lima 2019. Os 208.5 pontos não foram suficientes para que ele se classificasse entre os três atletas que chegaram ao pódio. Ele fechou a prova na quarta colocação e, com isso, seus planos de conquistar um ouro no Peru chegaram ao fim.
Mas quem conhece Galgani sabe que sua história, independentemente de quantas medalhas ele possa conquistar na carreira, ensina mais pela maneira como ele encarou os revezes que a vida lhe trouxe do que pelos pódios que o esporte lhe brindou até aqui.
Nascido em 25 de abril de 1983, em Sumaré, no interior de São Paulo, Alexandre tinha apenas 18 anos quando se viu em uma imensa enrascada no fundo de uma piscina. “Minha família tem uma chácara em Sumaré. Eu estava em um churrasco e lá tem uma cascatinha na piscina. Eu pulei lá de cima, meu pai viu e me deu uma bronca. Eu falei: ‘Tá bom! Nunca mais pulo lá de cima’. Aí, eu pulei da beirada, bati a cabeça no fundo e quebrei o pescoço”, recorda.
O Alexandre Galgani que mergulhou naquela piscina era um. E o que saiu socorrido pelos familiares e amigos era outro. Em segundos, sua vida sofreu uma reviravolta sem precedentes. Ali, uma nova trajetória passou a ser percorrida pelo paulista. Uma estrada repleta de momentos de incerteza, resignação e superação, que seria responsável por trazê-lo até Lima, onde ele conquistou, na última sexta-feira (24), na estreia do tiro esportivo no programa dos Jogos Parapan-Americanos, a medalha de prata na prova da carabina de ar mista em pé SH2.
“Eu só mexia os olhos. Não perdi a consciência em momento algum depois do acidente. Não desmaiei, não aconteceu nada. Nem com galo eu fiquei. Só sentia dor de cabeça, o corpo inteiro formigava e eu não tinha mais nenhum movimento”
Alexandre Galgani
“Na hora em que eu bati a cabeça, eu perdi todos os movimentos. Eu sabia o que tinha acontecido. Não sei como, eu subi de costas para superfície, porque eu estava me afogando. Também não sei como eu consegui virar de lado. Nessa hora, um amigo, que estava de fora me olhando, viu meu desespero, pulou e me segurou dentro d’água. Como eu já sabia o que tinha acontecido, eu falei: ‘chama todo mundo, entra todo mundo e me tira em bloco, imobilizado’. Me colocaram na beira da piscina e eu falei para o meu pai nem ligar para os bombeiros. Falei para ele entrar no carro e ir chamar os bombeiros pessoalmente para não demorar”, narra.
“Eu só mexia os olhos. Não perdi a consciência em momento algum depois do acidente. Não desmaiei, não aconteceu nada. Nem com galo eu fiquei. Só sentia dor de cabeça, o corpo inteiro formigava e eu não tinha mais nenhum movimento”, prossegue Galgani.
Antes do acidente, Alexandre sonhava em ser jogador de basquete. Ele já jogava profissionalmente pelo time de sua cidade, mas essa realidade ficou para trás. Seus sonhos haviam mudado de patamar. A partir daquele dia, voltar a ter domínio sobre o próprio corpo passou a ser seu objetivo de vida.
Um nervo mexeu
Alexandre foi levado ao hospital, onde fizeram uma aplicação de corticoide no pescoço para controlar o inchaço e tentar diminuir a amplitude da lesão. “Eu cheguei ao hospital, de lá fui para o centro médico em Campinas, onde fui operado pela primeira vez. Fiquei internado uns três meses e, quando tive alta, fui para casa fazer fisioterapia”, conta.
“Esse período foi muito difícil. Todo mundo tinha que fazer tudo por mim. Foi meio depressivo mesmo. Mas eu sempre tive uma cabeça boa. No começo, eu só mexia os olhos. Mas um dia, depois de alguns meses, eu fui ao médico e ele disse: ‘Quero ver você mexer alguma parte do corpo’. Aí eu falei para ele: ‘Eu acho que eu mexo um nervo aqui atrás da perna’. Aí, quando eu tentei, o nervo contraiu. A perna nem mexeu. Mas ele colocou a mão na minha perna, sentiu o nervo contraindo e logo depois disso ele falou: ‘Amanhã se interna que a gente vai fazer uma outra cirurgia’’, lembra, mostrando as cicatrizes que em breve ele ganharia no pescoço.
A iniciativa do médico representou a segunda reviravolta na vida de Alexandre. As intervenções alteraram o curso da lesão medular e o que se seguiu representou um passo decisivo rumo a reencontro de Galgani com o esporte.
“Ele desobstruiu a parte da frente da coluna”, resume Alexandre. “Quando eu bati a cabeça, o choque prensou as vértebras. Uma delas foi jogada para fora. Da minha quarta, quinta e sexta vértebras, a quinta foi jogada para fora. E isso estava pressionando a medula. Na verdade, eu fiz três cirurgias. Com isso, parou de pressionar. Depois de uns três meses, começou a voltar um pouquinho o movimento do braço. Em seguida, eu fui para o Sarah Kubistchek, em Brasília, e lá entrei na fisioterapia intensiva. Quando saí do Sarah, estava começando a conseguir levantar os braços e a conseguir ficar sentado, porque antes disso eu não ficava nem sentado.
“Você atira bem”
Depois da passagem pelo hospital referência em traumas na capital, novos horizontes se abriram para Galgani. “Do Sarah, eu fui para o AACD, em São Paulo. Fiquei mais uns três meses lá. E quando eu saí, já estava quase conseguindo levantar os braços e quase tentando tocar a cadeira. Voltei para casa e a partir daí foi fisioterapia todo dia. Minha mãe é uma das fundadoras da Pestalozzi em Sumaré. Eu voltei a fazer fisioterapia intensiva e isso me ajudou bastante. Comecei a fazer hidroterapia, que também me ajudou, mas o que mais me ajudou foi a ecoterapia”.
Alexandre reconquistou o movimento dos braços, formou-se em Direito e a vida, com seus reajustes, seguiu seu curso. Em 2013, o pai de Alexandre, Sérgio Galgani, incentivou o filho a voltar a atirar. Alexandre abraçou a ideia e, depois disso, a terceira reviravolta em seu destino estava prestes a acontecer.
“Depois das cirurgias, dos trabalhos de fisioterapia, hidroterapia e ecoterapia, consegui melhorar até o ponto em que eu estou agora. Meu pai era militar e como sempre incentivou a gente a atirar desde criança, voltei para o estande para praticar. Um dia, um cara me viu atirando e falou: ‘Pô, você atira bem. Por que não começa a participar de provas?’ Eu olhei para o meu pai e falei: ‘E aí? Você me ajuda?’. Na hora ele falou: ‘Ajudo!’ E aí eu comecei”, resume.
“O acidente foi em 2001 e eu comecei no tiro no fim de 2013. Foi quando eu conheci o James (James Lowry Neto, coordenador técnico da equipe de tiro esportivo no Parapan de Lima). Eu fui para Curitiba conhecer a modalidade e ver as adaptações. Fiz as adaptações em casa, voltei a Curitiba duas vezes para aprimorá-las e mostrar para eles se estava correto ou não. De lá para cá, venho treinando forte. Entrei para a modalidade no fim de 2013, e no começo de 2014 entrei para a Seleção Brasileira de tiro”, conta, com orgulho.
“Eu não tenho movimento nas mãos. Mexo só o dedo do gatilho e muito pouco. Ainda bem que o gatilho é bem levinho. Tocou, ele dispara. Minha arma fica no apoio que a gente chama de garfo, que tem uma mola. Essa mola simula o balanço do braço, justamente para dificultar, para não ficar estático e para nivelar a competição com quem tem outros tipos de lesão. De acordo com a mobilidade que o atleta tem, a mola pode ser mais dura ou mais mole, para igualar a dificuldade para todos”, explica.
Dissecção da aorta
Perder e ganhar faz parte do jogo da vida. Como lidamos com as derrotas é o que diferencia aonde podemos ou não chegar no fim das contas. Depois do acidente em 2001, Alexandre experimentou uma nova provação inimaginável em 2014. Um episódio que o abalou profundamente e que representou a quarta reviravolta em seu caminho.
“Meu pai sempre me acompanhava. Foi ele quem sempre me incentivou a entrar no esporte. No dia 16 de março de 2014, a gente foi a um campeonato em São Paulo, no Clube ADDG (Associação Desportiva Durval Guimarães), que eu represento. Quando a gente estava montando o equipamento, meu pai teve um problema no coração chamado dissecção da aorta”, contou Galgani.
“A veia aorta do coração tem três camadas e uma dessas camadas começou a vazar sangue entre as outras. Meu pai caiu para trás na hora. Ele foi para o hospital, mas infelizmente acabou falecendo”. Sérgio Galgani tinha apenas 62 anos.
A perda do pai foi um golpe duríssimo. “Eu pensei em desistir do esporte. Foi triste demais. Era meu pai quem treinava comigo todo dia e ele era meu melhor amigo”, lembrou Alexandre. O que se seguiu foi uma onda de solidariedade que foi responsável por ele ter prosseguido no tiro esportivo.
“Minha família entrou, com meus amigos, e disseram que eu não iria desistir. Eles me disseram que iriam se revezar. Um dia meus amigos treinariam comigo. No outro, minha mãe treinaria. No outro, meu irmão… Aí eu acabei não desistindo e deu no que deu. Eu consegui superar”.
Número um
Em 2016, Alexandre realizou um sonho. Disputou as Paralimpíadas do Rio, na capital fluminense, onde sentiu emoções que seguirão com ele até o fim da vida.
“O que eu sempre falo para todos é que nunca desistam, porque tudo é possível. Basta querer e correr atrás. Tem muita gente querendo ajudar. No fim, essa luta vale a pena”
Alexandre Galgani
“Quando eu entrei no tiro, a primeira coisa que eu imaginei foi participar da Paralimpíada no Rio, por ser no Brasil, que provavelmente eu não vou ter a oportunidade de participar novamente. Foi uma sensação maravilhosa. Um sonho realizado. Pena que eu não consegui ir para o pódio. Eu estava no começo, não estava muito bem preparado e já sabia que essa empreitada seria muito difícil. Mas só de ter participado foi uma bagagem surpreendente. Uma experiência indescritível. A sensação do pessoal gritando na abertura no estádio, a energia positiva daquele lugar era impressionante”, diz.
Depois do Rio 2016, o objetivo passou a ser Tóquio 2020. A classificação veio com quase um ano e meio de antecedência e de uma forma marcante. Em fevereiro deste ano, Alexandre Galgani tornou-se o primeiro atleta do Brasil no esporte paralímpico individual a garantir a vaga para os Jogos Paralímpicos do Japão.
“Fui para os Emirados Árabes em fevereiro com o foco de conseguir a vaga para Tóquio e deu certo. Conquistei a prata lá na etapa da Copa do Mundo e conquistei a vaga diretamente. Fui o primeiro atleta a conquistar a vaga no esporte individual pelo Comitê Paralímpico Brasileiro. Depois disso, mudou muita coisa. Depois de estar classificado você tira um pouco do peso das costas. Aí o foco já muda um pouco. Se Deus quiser, eu vou estar com uma bagagem maior para Tóquio para tentar brigar pelo pódio”, ressalta.
Gratidão e saudade
Todas as reviravoltas fizeram de Alexandre Galgani uma pessoa com um grande senso de gratidão. E na lista de reconhecimento aos atores que o ajudaram a reencontrar um novo sentido na vida pelo esporte, ele conta que o auxílio que recebeu do Governo Federal teve um papel muito importante.
“Na verdade, é isso que faz a diferença. O Bolsa Atleta e o Bolsa Pódio fazem a diferença na vida de um atleta. Se não fosse isso, hoje eu não teria condições de tentar sobreviver do esporte. Graças a Deus, hoje, estando no ranking mundial, posso pleitear a Bolsa Pódio, o que vai me ajudar ainda mais a evoluir. Se Deus quiser, vai dar certo”, afirma, referindo-se à maior categoria do programa federal de apoio ao esporte.
Galgani também é grato ao amigo que o socorreu na piscina, aos médicos que o operaram, aos profissionais que o ajudaram na fisioterapia, à mãe, aos familiares e amigos que o apoiaram nos treinos e a todos que contribuíram para que ele se tornasse um atleta do alto rendimento paralímpico.
Nessa lista, é claro, não poderia faltar o senhor Sérgio Galgani. “Sempre que ganho uma medalha me vem a lembrança dele e a gratidão. Se não fosse ele eu não estaria aqui, porque ele me ajudou desde o começo, no meu acidente, até o fim da vida”, diz.
Há espaço também para o esporte. Um aliado que tem um poder que só quem viveu as reviravoltas que Alexandre experimentou pode entender plenamente.
“Infelizmente, muita gente ainda não tem acesso a este mundo que a gente vive, que é o mundo do paradesporto. É um mundo de realizações, de sonhos possíveis. O que eu sempre falo para todos é que nunca desistam, porque tudo é possível. Basta querer e correr atrás. Muita gente diz que não tem condições financeiras, mas quem corre atrás acaba dando um jeito e conseguindo. Tem muita gente querendo ajudar. E, no fim, essa luta vale a pena”.
Luiz Roberto Magalhães, de Lima, no Peru – rededoesporte.gov.br