O ano de 2023 parece ter apresentado uma espécie de “amostra grátis” do futuro climático do planeta.
Só no Brasil, foram registradas oito grandes ondas de calor, secas sem precedentes na Amazônia e chuvas torrenciais, alagamentos e deslizamentos no litoral paulista e no Rio Grande do Sul.
Muitos desses eventos extremos, como são conhecidos pela Ciência, já apareciam nas projeções feitas pelos especialistas ao longo das últimas décadas.
Também é consenso que eles estão relacionados — e são potencializados — pelas mudanças climáticas causadas pela ação humana.
O tema está no centro dos debates da COP28, cúpula do clima organizada anualmente pelas Nações Unidas e que começa nesta quinta-feira (30/11) em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.
Mas o que o futuro nos reserva? Como o Brasil já é e será cada vez mais afetado pelo aumento das temperaturas?
Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o cenário traz, ao mesmo tempo, grandes ameaças e boas oportunidades.
Por um lado, o Brasil certamente sofrerá com ondas de calor intensas, períodos prolongados de seca e chuvas inclementes.
Por outro, há uma série de condições e características do território que, se bem aproveitadas, representam uma série de vantagens estratégicas para os brasileiros em comparação com outras partes do mundo — como o potencial de gerar energia limpa ou de reduzir rapidamente a emissão de gases do efeito estufa.
Entenda todos os detalhes desse cenário a seguir.
Aumento da temperatura média
Os registros históricos não deixam dúvidas: a temperatura média do planeta (e do Brasil) subiu de forma consistente desde o início da Revolução Industrial, a partir de meados dos séculos 18 e 19.
“Isso se deve a uma decisão tomada a partir dessa época, quando a geração de energia passou a ser baseada na queima de combustíveis fósseis, principalmente petróleo e carvão mineral”, diz o meteorologista Gilvan Sampaio, coordenador geral de Ciências da Terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
A grande questão é que essa queima joga, de forma contínua, toneladas e mais toneladas dos famosos gases do efeito estufa na atmosfera — um dos principais deles é o dióxido de carbono (ou CO2).
Esses gases permanecem na atmosfera durante décadas (ou até séculos) e bagunçam a forma como o calor é dissipado. Para resumir, o resultado desse acúmulo é o aumento médio da temperatura ano após ano.
Esse fenômeno pode ser observado no gráfico a seguir, que traz dados do Brasil nos últimos 121 anos.
Em 1901, a temperatura média do país foi de 24,91ºC. Já em 2022, subiu para 25,54ºC.
Essa diferença de 0,63ºC parece pequena, mas já faz uma grande diferença no fino balanço climático do país e do mundo.
Esse aumento progressivo da temperatura gera uma série de eventos extremos, como aqueles que ocorreram nos últimos meses — que, além de serem influenciados pelas mudanças climáticas, ainda tiveram a contribuição do El Niño, fenômeno marcado pelo aumento acima da média da temperatura nas águas superficiais do Oceano Pacífico nas proximidades da Linha do Equador.
“Esses eventos estão acontecendo de forma cada vez mais frequente em todo o planeta”, observa o cientista Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP).
“Segundo o Copernicus, a instituição climática da Europa, 2023 é o ano mais quente já registrado não apenas nos últimos dois séculos, mas desde o período interglacial, há 125 mil anos.”
Os efeitos disso já podem ser observados na prática.
“Episódios de chuva com volume maior que 50 milímetros por dia eram raros em São Paulo até a década de 1950. Hoje, são sete a dez episódios do tipo todos os anos”, afirma Sampaio.
O climatologista José Antonio Marengo, coordenador-geral de Pesquisa e Desenvolvimento do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), destaca que o Rio Negro, na Amazônia, chegou a 12 metros de profundidade no dia 20 de outubro.
“Esse é o volume mais baixo em 121 anos de observações. Além disso, tivemos as ondas de calor muito fortes em setembro, outubro e novembro”, diz.
“Falamos de uma sequência de eventos extremos que, combinados, geram consequências e são preocupantes.”
Calorão nas alturas
O aumento das temperaturas não deve parar por aí: as projeções feitas pelos cientistas reunidos no Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas apontam que o planeta pode ter um acréscimo de 1,5ºC a 4ºC na temperatura média até o final deste século.
A meta é reduzir ao máximo essa subida dos termômetros — o Acordo de Paris, assinado em 2015, traz uma série de metas que precisam ser cumpridas pelos países signatários para cortar a emissão de gases do efeito estufa e limitar esse aumento ao mínimo de 1,5ºC.
Mas o que tudo isso significa para o Brasil?
A oceanóloga Regina Rodrigues, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), aponta que as projeções sobre o futuro climático do Brasil são um pouco incertas, porque muitos dos modelos levam em conta a realidade e as características do Hemisfério Norte (onde muitas dessas ferramentas foram desenvolvidas).
“De maneira geral, podemos projetar um clima muito mais seco para as regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e partes do Sudeste, com um aumento do volume das chuvas no Sul”, diz a pesquisadora, que também representa o Programa Mundial de Pesquisa Climática da Organização Mundial de Meteorologia.
“Teremos também mais ondas de calor, como essas que tivemos ao longo de 2023.”
Segundo os dados compilados pelo Banco Mundial, esse aumento da temperatura média no Brasil vai variar bastante, de acordo com o ritmo da emissão dos gases estufas daqui em diante.
Em um dos cenários mais otimistas (em que as emissões são zeradas um pouco depois de 2050), os termômetros brasileiros passariam de 25,84ºC em 2014 para uma média de 26,67 ºC em 2100.
Já a possibilidade mais pessimista, em que as emissões globais dos gases do efeito estufa dobram, a temperatura média do Brasil em 2100 saltaria para 30,88ºC — uma diferença que ultrapassa os 5ºC em relação aos patamares atuais.
Mas por que o aumento da temperatura gera mais eventos extremos? A mudança nos padrões climáticos conhecidos e registrados ao longo de décadas e séculos modifica o fino balanço dos ecossistemas, que dependem dos ciclos de chuvas, secas, calor e frio para manter as mais diversas formas de vida.
As ondas de calor no oceano, por exemplo, fazem mais água marítima evaporar. Parte dessa umidade vai em direção ao continente e gera chuvas torrenciais — que causam enchentes e deslizamentos.
Já a elevação da temperatura em outros locais tem um efeito contrário: gera secas extremas, que matam a vegetação acostumada com certo nível de umidade e desequilibram toda a cadeia alimentar. Como mencionado anteriormente, os efeitos da estiagem na agricultura também podem ser dramáticos.
Quanto maior for esse aumento da temperatura, piores serão as consequências em termos de eventos extremos, como os calorões, as estiagens e os temporais, como apontam especialistas.
“O Brasil tem vulnerabilidades enormes. Grande parte da nossa economia é baseada no agronegócio, que sofrerá uma queda de produtividade com a diminuição das chuvas e o aumento das secas”, destaca o físico Paulo Artaxo, professor da USP.
O Brasil já é mais propenso aos eventos extremos, porque é um país tropical, explica ele.
“Um aumento de 3 ºC na Suécia pode até ser benéfico para o clima na região. Agora, 3 ºC a mais para quem mora em Teresina, Cuiabá ou Palmas pode significar a diferença entre a vida e a morte”, complementa.
Nobre lembra que essa vulnerabilidade climática também é influenciada pela condição socioeconômica do país.
“O IBGE calcula que 2 milhões de brasileiros vivem em áreas de altíssimo risco para deslizamentos ou inundações e não podem continuar nesses locais. Além disso, 10 milhões moram em regiões de alto risco”, diz o cientista.
“E sabemos que o impacto de eventos extremos é muito menor nos países que protegem melhor as suas populações.”
Como exemplo, os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil citam os casos de Holanda e Bangladesh — que têm boa parte do território abaixo do nível do mar — ou de Japão e Turquia — onde terremotos são frequentes (que não estão relacionados ao clima, mas são eventos que geram grandes catástrofes).
Em ambos os casos, os impactos desses eventos (inundações ou terremotos) nas nações mais ricas e com planos de contingência (caso de Holanda e Japão) costumam ser bem menores do que nos lugares mais pobres e sem uma estrutura para proteger a população (como Bangladesh e Turquia).
Se, por um lado, o presente (e o futuro) do clima do Brasil gera preocupações, a boa notícia é que a missão do país de mitigar os riscos pode ser relativamente mais fácil do que a de outras nações.
“O Brasil tem uma vantagem estratégica enorme, que nenhum outro país do mundo possui: nós conseguiríamos reduzir nossas emissões de gases do efeito estufa em 50%, pela metade, se parássemos o desmatamento da Amazônia”, diz Artaxo.
“E nós conseguimos fazer isso a um custo baixíssimo e num curto espaço de tempo.”
Nobre lembra que o Brasil pode ser o primeiro grande país a zerar as emissões de gases do efeito estufa.
Para contextualizar, as cinco nações que jogam mais CO2 na atmosfera são China, Estados Unidos, Índia, Rússia e Brasil.
Mas há uma diferença importante nesse grupo: a emissão de gases do efeito estufa dos quatro primeiros países tem a ver com a geração de energia e a queima de combustíveis fósseis (como carvão e petróleo).
Já no Brasil, como é possível conferir no gráfico a seguir, a maior parte das emissões está relacionada à agricultura, ao uso da terra e ao desmatamento.
Em termos práticos, isso significa que China, Estados Unidos, Índia e Rússia precisam fazer toda uma transição energética, abandonar os combustíveis fósseis e criar uma nova rede baseada em fontes renováveis (como placas solares, usinas eólicas, hidrelétricas…).
Isso tem um custo financeiro alto e gera impactos na economia desses países.
Já a “lição de casa” brasileira consiste basicamente em reduzir drasticamente — e eventualmente zerar — o desmatamento.
Essa, aliás, é uma das grandes promessas do país nas negociações da COP28.
Os especialistas ainda sugerem recuperar as áreas degradadas — regiões que foram desmatadas e hoje não são usadas para nenhuma atividade comercial, mas podem ser regeneradas e virar floresta (ou campo para agricultura ou pecuária).
Fonte: BBC