Em audiência pública da Comissão de Direitos Humanos (CDH) nesta quarta-feira (23), debatedores destacaram a reforma tributária como oportunidade para estimular o consumo de produtos saudáveis e sustentáveis. Eles defenderam tributação seletiva sobre alimentos ultraprocessados, medida que poderia contribuir especialmente para a saúde da população de baixa renda. A criação de um imposto seletivo sobre produtos considerados prejudiciais à saúde, como cigarro e bebidas alcoólicas, está prevista na proposta da reforma (PEC 110/2019), em análise no Senado.
Na abertura da reunião, o senador Paulo Paim (PT-RS), presidente da CDH, lembrou que, em quase quatro décadas de Congresso, sempre ouviu falar de propostas de reforma tributária, mas “acaba nunca acontecendo”. Para ele, o desenvolvimento da nação, contribuindo para a promoção do bem-estar do povo, depende da reestruturação do sistema tributário.
— Uma reforma tributária consciente pode ser a alavanca para um novo cenário onde a saúde pública, a qualidade da alimentação da população e o consumo correto possam ser priorizados — disse.
Segundo estudos citados por Paim, o sistema de tributos atualmente em vigor resulta em incentivos a produtos que geram desnutrição, obesidade e mudanças no clima, reduzindo o acesso a alimentos orgânicos e agroecológicos.
Conscientização
Mônica Andreis, diretora-geral da organização não governamental ACT Promoção da Saúde, defendeu incentivos fiscais para produtos saudáveis como forma de “promover a saúde da população e a saúde do planeta” e manifestou apoio a medidas como o imposto seletivo sobre produtos nocivos à saúde e ao meio ambiente — incluindo tabaco, bebidas alcoólicas e alimentos ultraprocessados. Ela mostrou pesquisa de opinião que apurou 90% de apoio ao aumento de tributos para produtos nocivos.
— Ninguém vai querer imposto a mais à toa, mas, quando se fala em produtos nocivos, há a conscientização de que devam ser mais caros e mais desestimulados.
Diretora do Departamento de Análise Epidemiológica e Vigilância de Doenças não Transmissíveis do Ministério da Saúde, Letícia de Oliveira Cardoso citou estudos que classificam o consumo de álcool no Brasil como excessivo, crescente entre as mulheres e disseminado entre os adolescentes. Ela citou a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) de aumento do custo das bebidas alcoólicas para levar à redução do consumo, principalmente entre a população mais carente.
— Não podemos perder de vista que as escolhas são moldadas pelo ambiente em que as pessoas vivem. Por isso, o papel da regulamentação e da tributação é muito importante.
Letícia citou o apoio do Ministério da Saúde à tributação seletiva e acrescentou que a desoneração da cesta básica é, além de um benefício social, uma garantia para a proteção da saúde da população e para a prevenção de doenças crônicas.
Ultraprocessados
Por sua vez, o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão citou o papel do Congresso no enfrentamento ao tabagismo, mas classificou como “desolador” o efeito do consumo excessivo de alimentos ultraprocessados e bebidas açucaradas, que inclui obesidade infantojuvenil e aumento da incidência de câncer de intestino em pacientes jovens.
— É o momento para o governo, a sociedade e o Parlamento se unirem num esforço concertado para uma radical mudança nesse padrão alimentar — avaliou.
A procuradora do Ministério Público do Trabalho Marcia Cristina Kamei Lopez Aliaga cobrou uma visão abrangente da reforma e criticou a abordagem tributarista “desenvolvimentista”, sem coerência com questões sociais. Ela salientou que os impactos do alimento sobre a saúde pública vão além do acesso à alimentação saudável, mas dizem respeito ao modelo de produção vigente — que considera pôr em risco a própria sobrevivência humana.
— Há muito tempo nosso sistema produtivo e de distribuição de alimentos dá sinal de desgaste. Passa a ser um desafio trazer segurança alimentar, não deixar ninguém para trás e não dar tratamento injusto a grupos e segmentos econômicos menos favorecidos.
Marcos Aurélio Pereira Valadão, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), citou estudo que aponta na reforma tributária uma oportunidade de aumento da carga de impostos sobre o tabaco. Porém, nos cenários estudados de busca de maximização da receita, a alíquota sobre o produto não deverá ultrapassar 47,9%.
— A partir daí, a redução do consumo é tão alta que se passa a perder arrecadação.
Distorções
A consultora Edna Carmelo, especialista em tributação de cadeias produtivas, apoiou uma cesta básica desonerada e de produtos saudáveis, mas disse entender que, do jeito que está, o texto da reforma tributária (que desonera automaticamente os produtos de exportação) poderá agravar distorções.
— Ao fazer isso, o alimento da cesta básica e o hortifrúti vão ter uma tributação que as commodities de exportação não vão ter. O proprietário que tem seu quinhão de terra vai ser mais ainda “tentado” a produzir commodities em vez de alimentos para consumo direto.
Representando o Ministério do Meio Ambiente, Vanessa Negrini argumentou que uma reforma tributária ambientalmente responsável deve valorizar a questão do bem-estar animal, acompanhar a recomendação da OMS de deter o consumo de carnes processadas e incentivar fontes alternativas de proteínas à base de plantas.
— Quando a questão econômica aperta, a sociedade é empurrada a consumir determinados tipos de alimentos que acabam sendo mais acessíveis.
Sem ‘paternalismo’
Marcos Lopes, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), disse esperar uma tributação seletiva sobre alimentos ultraprocessados, que associou a aumento de incidência doenças na população de baixa renda. Ele pediu, porém, uma visão mais abrangente para apontar produtos básicos cuja produção viola o direito humano à alimentação adequada.
Já Tathiane Piscitelli, professora de direito tributário da FGV, contestou o conceito de que o imposto seletivo funcionaria como um “cheque em branco” e constituiria em “paternalismo”. Ela lembrou que o mecanismo já está em vigor e tem funcionado. Além disso, manifestou temor de redução tributária para produtos como agrotóxicos e alimentos ultraprocessados e argumentou de que a possibilidade de cashback (devolução dos tributos pagos) não é alternativa à alíquota zero para a cesta básica.
Paula Johns, também representando a ACT Promoção da Saúde, alertou para o impacto da produção da carne sobre o meio ambiente e lembrou que os créditos tributários da Zona Franca de Manaus beneficiam a indústria de cerveja e refrigerantes.
Fonte: Agência Senado