Por Natalino Salgado
A religiosidade popular no tambor de crioula é o tema de um artigo publicado pelo professor Sergio Ferretti que recentemente deixou este plano material de existência. O artigo foi publicado, na edição de junho deste ano, pelo Jornal do Maranhão, publicação de orientação católica da Ação Social Arquidiocesana de São Luís, como homenagem ao homem que dedicou sua vida à pesquisa de parte de nossa riqueza cultural.
Ao ler o artigo, constata-se que as reflexões do pesquisador continuam atuais. Vejamos um trecho do artigo: “A descontração e a informalidade das festas populares, especialmente do tambor de crioula, dentro ou fora dos terreiros, constituem características intrínsecas desta manifestação tão contagiante, que participa ao mesmo tempo da cultura e da religiosidade popular”.
No artigo, o professor invoca a origem do tambor de crioula como uma forma de culto a São Benedito e outras entidades, mas ressalta que a manifestação popular é facilmente encontrada ao longo do ano, especialmente em maio, nas casas de culto das religiões de matriz africana, cuja essência está no fato de os tambores conduzirem o ritmo da dança-oferenda.
Como junho é um mês que marca profundamente a identidade de São Luís, como cidade e comunidade, em diversos arraiais é fácil encontrar grupos de tambor de crioula que dançam à luz das fogueiras que aconchegam o bailado de seus dançarinos. Para alegria nossa, as festas que convergem neste período em louvor dos santos católicos Antônio, Pedro e João formam uma teia de cores, sons, estética e música que colorem os dias de transição entre as chuvas e os dias mais quentes e secos, ventosos e ensolarados.
Ferretti destaca o tambor de crioula – cuja pluralidade denuncia também a mistura de culturas africanas que para aqui foram trazidas nos séculos XVIII e XIX – e aponta para outras tantas importantes manifestações, como é o caso do Bumba meu Boi que aqui ganha características únicas, cuja curiosidade a ser destacada é a síntese das raças que forjaram o Brasil em seus primeiros dias a pouco mais de 500 anos. A história seminal de onde a manifestação cultural nasce reúne brancos, negros e índios na síntese fundamental da brasilidade.
O desejo de Catirina é o evento catalizador de uma encenação trágica, mas com final feliz onde cada grupo étnico desempenha um papel fundamental e insubstituível e ainda que reproduza relações desiguais, a encenação festiva transforma o evento em grande congraçamento em que papeis podem ser trocados, visto que é a projeção de um desejo maior, não mais da Catirina, mas da unidade entre estas vertentes que compõem a textura do ludovicense.
Mas, se o Bumba meu Boi é uma síntese de raças, as festas de junho têm espaço para as manifestações de matriz mais identificada com um grupo em particular, os afrodescendentes, cujas manifestações confirmam uma ancestralidade multivariada que se incorpora à identidade única que tem a cidade de São Luís. A Dança Portuguesa com origem europeia sincretizou-se nas ruas de pedra de cantaria e se infiltrou na comunidade reencenando alegrias das festividades de mundos que o popular jamais conheceu.
As quadrilhas também colorem e animam os espaços onde se apresentam, vindas dos salões e bailes restritos à Corte, mas que nas ruas e entre o povo ganhou colorido, vibração, uma cópia alheia aos rapapés dos nobres. No Nordeste, vestiu-se de baião e as outras singularidades musicais desta região do país.
Enfim, a partir da descrição de Ferretti, acerca do tambor de crioula, é possível conhecer um pouco da riqueza dessa manifestação e atentar para o tesouro que temos à disposição, tão perto de nós, nos arraiais espalhados pela cidade.
Natalino Salgado Filho
Médico, doutor em Nefrologia, ex-reitor da UFMA, membro da ANM, da AML, da AMM, Sobrames e do IHGMA