Por José Sarney
Ninguém igualava Adauto no combate a João Goulart, ao PTB e a Getúlio. Com essa marca e sendo líder da UDN, ao saber que os ministros militares — do Exército, da Aeronáutica e da Marinha — tinham feito um manifesto vetando a posse de Goulart, vice-presidente da República, como sucessor de Jânio Quadros, surpreendeu a Câmara dos Deputados.
Eu estava presente na sessão extraordinária do dia 27 de agosto de 1961. Era o fim da tarde. A Casa regurgitava de ódio e paixão, dividida entre os que queriam a assunção do Jango e os que queriam que os militares dessem um golpe evitando essa posse.
Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, assumira interinamente a Presidência da República sem ter poder algum, porque o poder estava nas mãos dos militares.
No meio daquele tumulto, quando todos esperavam que Adauto Lúcio Cardoso fizesse um discurso daqueles que ele sabia fazer — e como só ele sabia: com uma linguagem pausada, contundente, verrina e profundamente agressiva —, ele surgiu com um papel enrolado na mão. Dirigiu-se à tribuna e leu a seguinte petição:
“Adauto Lúcio Cardoso, advogado e deputado federal, representante eleito pelo povo do Estado da Guanabara, no cumprimento dos deveres do mandato que exerce, vem oferecer contra o senhor Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara dos Deputados, ora no exercício da Presidência da República, contra o Ministro da Guerra, contra o Ministro da Aeronáutica e contra o Ministro da Marinha, representação na forma da lei número 1.079, de 10 de abril de 1950, cujo art. 13, item 1, estatui serem crimes de responsabilidades dos ministros de Estado os atos nela definidos, ‘quando por eles praticados ou ordenados’.”
Este era o Adauto Lúcio Cardoso: acima de todos os interesses políticos, acima de todas as suas responsabilidades de chefe da oposição, invocava a Lei para processar por crime de responsabilidade aqueles que tinham feito uma comunicação dizendo que não dariam posse a João Goulart, conforme os termos da comunicação de Mazzilli ao Congresso Nacional: “…na qualidade de chefes das Forças Armadas, responsáveis pela ordem interna, me manifestaram a absoluta inconveniência, por motivos de segurança nacional, do regresso ao país do Vice-Presidente João Belchior Marques Goulart.”
Adauto desafiou a todos. Magoou seus companheiros e seus amigos, mas ficou ao lado da legalidade e da Constituição.
A cena está indelével em minha mente de parlamentar. Não presenciei gesto mais patriótico, de maior coragem cívica do que este: sua cabeleira branca, aquela postura de autoridade, aquele homem de grande bravura subindo a pequena escadaria que levava à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados para entregar a sua denúncia.
Aliomar Baleeiro, que era seu amigo-irmão, os dois sempre juntos, estranhou o gesto e gritou:
— Ô Adauto, você fazendo isto?
Adauto parou e, fora dos seus hábitos, da sua polidez e da sua educação, disse em resposta ao Baleeiro:
— Aliomar, vá à m…!
Eu lutei para não chegar perto dele e beijá-lo. Mas guardo até hoje a convicção de que foi a maior figura que conheci no Congresso.