Aos 20 anos, Ana Beatriz Ferreira foi aprovada em 1º lugar no curso de psicologia da Universidade de São Paulo (USP), em uma das modalidades de cotas. Moradora da periferia da capital paulista e ex-aluna da rede pública, a jovem tem uma trajetória marcada pelo diagnóstico tardio de deficiência visual e pela descoberta da própria identidade racial.
Ana nasceu com albinismo, uma desordem genética que prejudica a produção de melanina. Sua mãe, empregada doméstica, é negra. Seu pai, eletricista aposentado, é branco.
“Era algo muito conflitante para mim. Quando era criança, eu via o racismo que minha mãe, minhas tias e minhas amigas enfrentavam”, diz. “Eu não queria ser uma pessoa negra e passar por aquilo. Tentei usar o albinismo para me tornar branca, e alisei meu cabelo.”
Mas, aos poucos, a partir da pré-adolescência, a compreensão de Ana acerca de sua identidade mudou. Por meio de seu irmão e de seus colegas do colégio, ela entrou em contato com discussões políticas e conheceu ideias do feminismo negro.
“A partir dali, fiquei meio confusa. Eu sou uma pessoa branca ou não sou? Eu tenho privilégios ou não tenho? O que eu sou? E aí, decidi que não alisaria mais meu cabelo e que aceitaria minha negritude”, afirma.
“O albinismo pode tirar a melanina, mas existem pessoas albinas que são negras, brancas ou amarelas. Para mim, era importante reivindicar esse lugar.”
Depois de “muitas discussões internas e externas”, Ana resolveu se inscrever no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) na modalidade de cotas para pretos, pardos e indígenas que tivessem estudado na rede pública.
“Eu não queria ocupar um espaço que não era meu; não queria ser oportunista. Entendi que meu lugar era o de pessoa negra: o de pessoa negra e albina”, diz.
Descoberta tardia da deficiência visual
Moradora da periferia na Zona Leste de São Paulo, Ana sempre estudou em escolas públicas.
No ensino fundamental, para enxergar a lousa, precisava se levantar e ficar bem perto dela — os óculos de grau não resolviam a dificuldade.
Foi só aos 13 anos que ela entendeu por quê: o albinismo não era apenas cutâneo, e sim ocular, causado por uma baixa síntese de melanina também nos olhos. Isso comprometia significativamente sua visão.
Descobrir, mesmo que tardiamente, que tinha uma deficiência foi determinante para lutar por novos direitos e recursos de acessibilidade. Passou a requisitar adaptações que facilitavam sua vida, como a ampliação nas letras das provas do Enem e dos vestibulares.
Sem luz e com vazamento de água: as dificuldades no ensino público
O diagnóstico tardio fez com que Ana perdesse boa parte do conteúdo ensinado na escola. Conforme crescia, não se sentia mais à vontade para se levantar e andar até a lousa.
“Eu não queria ser vista. Fui desenvolvendo meus métodos, né? Pegava o caderno dos amigos depois. Mas aí já tinha perdido todo o passo a passo da explicação do professor. São barreiras que enfrentei”, diz.
A própria infraestrutura da rede pública também comprometia o processo de aprendizagem da jovem. No ensino médio, de 2015 a 2017, ela se mudou para uma escola estadual no bairro do Tatuapé.
Foram anos turbulentos, com greves de funcionários e escândalos na compra de merendas. “Para mim, foi um momento importante enquanto cidadã. Minha formação política começou ali, quando vi a tentativa de desmantelarem o ensino público. Mas foi muito desafiador”, lembra.
“E a gente ainda tinha problemas com falta de luz — no período da tarde, eu precisava ir embora mais cedo, porque não tinha iluminação natural. Perdia a aula. E também, às vezes, vazava água quando chovia. Enchia tudo: corredor, sala.”
Estudos para o Enem
Quando Ana terminou o ensino médio e foi prestar vestibular, sentiu “que essas questões pesaram bastante”.
“É uma defasagem em vários sentidos: por causa da estrutura da escola, do diagnóstico tardio da minha deficiência, das greves e movimentações políticas para conseguirmos melhorias na educação. Eram muitas dificuldades”, diz.
A jovem ainda não tinha certeza se queria entrar na universidade ou se deveria focar no trabalho. “Na periferia, quando seus recursos são escassos, existe esta questão: você está entrando na vida adulta e vai ficar dependendo dos seus pais? Eu queria me sustentar”, conta.
Ela até entrou em um cursinho popular, voltado para estudantes de baixa renda, mas se dedicou mesmo à carreira de modelo, após ser descoberta por um fotógrafo na rua.
Depois de dois anos, em 2019, ela optou por só estudar e buscar uma vaga na universidade. Teve apoio do cursinho gratuito MedEnsina (2019) e, em 2020, conseguiu uma oportunidade de não pagar as mensalidades do Poliedro.
“Comecei a estudar para valer. Descobri que poderia ter uma bolsa sendo monitora lá. Fazia atividades para a instituição e tinha acesso a toda a estrutura. Pensei: agora, vou brilhar!”, relata.
Mas, semanas depois do início das aulas, começou a pandemia de Covid-19. Ana precisou se adaptar ao formato de ensino remoto e encontrar um espaço para estudar em casa. “Fazer essa transição foi difícil. Eu via a realidade externa no meu bairro, com pessoas morrendo; foi sofredor. Não sei se eu teria conseguido me preparar se não fosse a estrutura do Poliedro”.
No fim de 2020, ela prestou Fuvest e Enem, para tentar uma vaga na USP. Na primeira, não foi aprovada — faltou muito pouco. Mas depois, pelo Sisu, conquistou o primeiro lugar em psicologia em uma das modalidades de cotas.
“Pensei em outros cursos de ciências humanas, porque achava que a psicologia fosse individualizada e não se voltasse às pessoas da periferia. Como eu seguiria uma carreira sem poder me voltar para os meus? Mas aí descobri que existia, sim, uma psicologia mais plural e diversa, articulada com questões de raça, classe e gênero”, afirma Ana.
Ela faz questão de reforçar que seus resultados não foram alcançados apenas por esforço próprio.
“Meu caso não pode ser uma comprovação de que a meritocracia funciona no nosso país. Eu tive uma série de privilégios: apoio da minha família, acesso a cursinhos que me ajudaram, possibilidade de parar de trabalhar por um período para estudar. Claro que existe uma questão de dedicação pessoal, mas também há uma rede de apoio que nem todo mundo tem.”
As aulas na USP já começaram. E a luta política continua: a estudante faz parte do coletivo negro “Escuta Preta”, com outras estudantes de psicologia.
“Sinto que consigo entender e criar minha própria voz, minha própria história, sem precisar de terceiros falando o que sou ou que não sou.”