A advertência é do médico sanitarista Gonzalo Vecina. Fundador e ex-presidente da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), ele fala ao Tutaméia sobre perspectivas para a vacina, aponta os erros de Bolsonaro, descreve a inação do Ministério da Saúde, critica as aberturas promovidas por governos, alerta para os riscos que corre a agência e examina a questão da pandemia de um ponto de vista panorâmico.
Ex-secretário de saúde da cidade de São Paulo, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e da Universidade de São Paulo (USP), Vecina examina as consequências econômicas e sociais da pandemia. Saúda os movimentos de solidariedade que surgiram no início do ano, mas declara:
“Não tem como construir um mínimo de dignidade só com filantropia e solidariedade. Se não tiver Estado, teremos barbárie. Não tem a menor dúvida disso”. Para ele, será preciso distribuir dinheiro para os mais pobres, “jogar dinheiro de helicóptero”, como defendem muitos economistas de diferentes matizes.
“A sociedade vai ter que passar por essa crise para chegar do lado de lá. Ou vai renovar o auxílio emergencial, ou vai ter algum outro tipo de auxilio, ou vamos ter que colocar esse presidente para fora, que é uma hipótese que é muito louvável e que deve ser considerada. O substituto não é grande coisa, mas talvez faça menos bobagem do que ele”.
O médico descreve o rosário de erros do governo Bolsonaro no enfrentamento do desastre sanitário. Condena o negacionismo, a falta de coordenação, a propaganda de remédios ineficazes, o mau exemplo de comportamento.
“Esse comportamento do líder do país é extremamente inadequado e leva as pessoas a terem comportamento inadequado, que vem do mau exemplo dos governantes. É um desastre o que essa ignorância está provocando no país”.
Desigualdade, racismo, ambiente e SUS
Vecina observa que a mortalidade é maior entre os mais pobres, negros, analfabetos “que têm que sair todos os dias para buscar o seu sustento e encontram o vírus. Se eles não se movimentarem, morrem de fome. Saíram e enfrentaram a morte. Em Nova York, por exemplo, a epidemia matou três vezes mais negros do que brancos. Por causa da desigualdade social, da pobreza. O reconhecimento da desigualdade pode ser um dos legados dessa crise sanitária. É entender que a desigualdade tem que ser enfrentada, o racismo estrutural tem que ser enfrentado”.
Vecina discorre sobre a origem da covid, resultado da destruição ambiental, “a mesma destruição que está acontecendo na Amazônia, no Pantanal e já aconteceu na Mata Atlântica”.
Ressalta: “Temos que exigir que da sociedade –e a sociedade é nossa, não é deles– um comportamento mais preocupado, mais sadio, mais civilizado com o meio ambiente. e temos que procurar ter uma sociedade mais civilizada, o que significa uma sociedade menos desigual. Temos que descobrir a desigualdade como uma excrescência, uma anormalidade. A desigualdade não é normal, é anormal. Ela só será combatida se eu quiser que seja –e esse eu é você. Você tem que querer que não exista mais desigualdade. Isso significa ter um SUS [Sistema Único de Saúde] de verdade. Não podemos permitir que privatizem e destruam o SUS”.
Brasil está fazendo tudo errado
Ele compara a covid 19 com a gripe espanhola (1918-1920). Naquele momento, o Brasil tinha 29 milhões de habitantes e contabilizou 35 mil mortos. Esse número transferido para o universo de hoje, de 210 milhões de brasileiros, significaria 255 mil mortos.
“Estamos agora no nono ou décimo mês dessa pandemia e já passamos da metade desse número. Essa pandemia está se demonstrando tão ou mais letal do que o maior desastre sanitário que tivemos, que foi a gripe espanhola”, diz.
“A gente vai se acostumando com as desgraças e com as coisas erradas. Temos que entender a gravidade do desastre que está acontecendo e reagir. O Estado tem que ser chamado à responsabilidade; ele tem que dar um passo atrás. Tem que mandar fechar coisas que ele permitiu que abrisse e que estão erradas em estarem abertas, cinemas, casas de espetáculo, restaurantes”. E enfatiza:
“Tem muita coisa errada nesses planos de reabertura. Não está correto não achar que existe uma situação dramática. Não está correto não ter uma liderança federal. O Ministério da Saúde é responsável por 50% dos recursos do SUS e ele não está assumindo essa liderança. Não está correto cada Estado ter que descobrir o que vai fazer. Não estamos sendo suficientemente exigentes com o uso de máscaras. As máscaras são fundamentais. A máscara protege o próximo, não me protege. É preciso evitar sair de casa desnecessariamente. Não estamos testando; está errado. Estamos fazendo tudo errado. Falta coordenação federal”.
O médico analisa nesta entrevista as ações dos diversos governos no enfrentamento à pandemia. Critica o modelo sueco, defendido por governistas. “O modelo sueco deu em mais mortes e em falência da economia”, resume.
Vacinação precisa de Estado
Ao Tutaméia, Vecina fala de sua apreensão sobre o próximo desafio: a vacinação. Compara as diversas vacinas em questão e prevê que o país possa vacinar até o final do ano que vem 160 milhões de brasileiros. Ressalta que é urgente construir um plano de vacinação, definindo, por exemplo, quem vai ser vacinado em primeiro lugar: profissionais da saúde, idosos, portadores de comorbidades.
Quem mais? Trabalhadores do transporte coletivo, o pessoal das penitenciárias, moradores de alguma região onde o vírus esteja mais ativo? Há ainda muitas decisões a tomar sobre logística, organização, mobilização.
“Precisa começar a discutir isso. Precisa de uma inteligência no Ministério da Saúde funcionando. Precisa de governo, se não nós não vamos utilizar de maneira inteligente [a vacina]. Precisamos de governo, e é o que nós não temos. Espero que a sociedade acorde para isso e exija que o governo governe. E que o Ministério Público faça o seu papel, porque isso é papel do Ministério Público também. E também da imprensa. Para que a sociedade possa se posicionar para essa possibilidade de desastre que estamos vivendo. Vai ser um desastre se governo federal não assumir a vacina”.
Temor sobre indicado de Bolsonaro para Anvisa
O criador da Anvisa fala da polêmica em que a Agência se envolveu com o Instituto Butantã em relação aos testes da vacina chinesa, interrompidos brevemente após o suicídio de um voluntário. Para ele, o caso resultou da falta de diálogo.
“Tenho confiança nos servidores da Anvisa. São servidores são de carreira, estáveis, que lutarão pelo que construíram. O que tem lá na Anvisa não é dos atuais diretores; é fruto de uma geração. Tenho certeza de que os servidores não permitirão [o uso político da agência]. Sabem que é uma agência de Estado, não de governo. Que não têm que responder ao presidente. Que o presidente vai, e eles ficam. Os servidores não permitirão que aconteça uma coisa dessas. Mas tenho medo do futuro”.
Isso porque Bolsonaro indicou para a direção da agência o tenente-coronel Jorge Luiz Korman. “Esse diretor indicado, esse tenente-coronel não sabe o que é saúde. É um negacionista. Espero que o Senado faça o papel de representante do povo e reprove esse sujeito. Ele não tem uma biografia. Só fez Agulhas Negras. Espero que não seja diretor da Anvisa”.
Por Raimundo Borges